quinta-feira, 21 de maio de 2015

Aspas... “anathema sit”?


Sidney Silveira
A Sergio Pachá

Tenho relido gramáticas que há tempos não compulsava: algumas antigas e consagradas com justiça, outras recentes e não menos dignas de louvor — isto além de ter passado os olhos detidamente nos originais da "Suma Gramatical" do amigo Carlos Nougué, a qual em breve ganhará formato de livro. Para mim, estava fazendo falta revisitar estes mestres da língua pátria, deixar-me novamente entranhar por seus textos, vislumbrar o porquê de alguns desacordos pontuais entre eles.

Todo hábito que se adquire está sujeito a tornar-se vicioso com o tempo, no sentido de cristalizar soluções úteis nalguns casos, porém deletérias noutros. Com a escrita não poderia ser diferente, e nela o vício é a repetição, incongruente com a índole do idioma, de fórmulas que o padrão da norma culta não aceita. Escritores entre nós consagrados, como Lima Barreto, por exemplo, deram mostras de que tais escorregadelas podem suceder mesmo a homens de talento absolutamente senhores dos recursos expressivos do idioma.[1] Ora, ainda mais podem fazer tropeçar redatores de boa vontade, como este escriba!

Feito o preâmbulo, detenho-me no tópico relativo ao uso das aspas, criticado por um número não desprezível de pessoas como algo empobrecedor e sempre dispensável. Advirto que não é bem assim, e para tanto valho-me da copiosíssima "Gramática da Língua Portuguesa Padrão", de Amini Boainain Hauy, a qual é enriquecida por vasto exemplário e comentários especiosos, além de estar abonada por referências extraídas duma respeitável bibliografia de estudiosos das questões vernáculas entre nós. 

Mencionarei apenas alguns casos em que as aspas são convenientemente usadas:

1- Para marcar o termo fundamental de um aposto subentendido. Exemplo: "Reformaram a 'Luz'". (estação da);
2- Para realçar palavras ou expressões estranhas à língua culta, tais como gírias e expressões populares, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos, bem como formas de expressão peculiares ou desabonadas, com as quais o comunicador não concorda, seguidas estas últimas geralmente da fórmula latina sic. Alguns exemplos: "Ele só gosta do 'dolce far niente'". "Diziam preferir 'mais' (sic) a tortura à traição";
3- Para destacar, como recurso estilístico, em sentido figurado, uma palavra ou expressão empregada com sentido distinto do usual. Exemplo: "Ela era uma 'máquina'";
4- Para marcar, nos diálogos, a mudança de interlocutor;
5- Para destacar um termo ou expressão qualquer, com o intuito de acentuar, no texto, sua importância ou valor significativo. Exemplo: "O reconhecimento da liberdade dos índios, mesmo quando se tratasse de liberdade 'tutelada' ou 'protegida' (...)". [Sérgio Buarque de Holanda];
6- Para assinalar capítulos ou títulos de obras.

O que está dito acima por Amini Boainain é referendado por gramáticos como Napoleão Mendes de Almeida, Said Ali, Celso Cunha, Gladstone Chaves de Melo e outros, os quais — em diferentes obras — mencionam os casos em que as aspas podem ser substituídas por grifo, negrito ou itálico, ou então simplesmente dispensadas, sem que isto acarrete problema quanto à compreensão do texto ou quanto à intenção de realce semântico do autor.

Não sejam jogadas, pois, as pobres aspas no limbo. Antes de alguém perpetrar o “aspicídio”, convém ter à mão, como antídoto contra um ímpeto desta natureza, duas ou três gramáticas (aconselho a “Gramática do Português Contemporâneo”, de Celso Cunha e Lindley Cintra; a “Gramática Metódica da Língua Portuguesa”, de Napoleão Mendes de Almeida”; e quaisquer obras de Said Ali, Mário Barreto, Adriano da Gama Kury e Gladstone Chaves de Melo).

Quem vos diz isso é pessoa que muitas vezes, depois de reler um texto autoral, vê incorreções e faz a emenda. Não por outro motivo, quando um amigo disse-me que estava na hora de eu enfeixar em livro alguns artigos de metafísica tomista deste “Contra Impugnantes”, respondi:

— Antes eles teriam de passar por grande revisão. Muitos foram escritos enquanto eu estava no trabalho ou no intervalo de alguma atividade, para responder a indagações de amigos e conhecidos. 

Volto às aspas apenas para lembrar um adágio cabível no caso delas: "O abuso não tolhe o uso". Portanto, se há situações em que elas são mal empregadas, não quer dizer que nunca se deva usá-las.

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1- Lima Barreto tinha o vezo de empregar o pronome "se" como sujeito de verbo em modo finito. Frases do tipo "Roubar é praxe tolerada entre os políticos e, que eu saiba, nunca SE A PUNIU" são encontráveis em Lima. Não se trata, aqui, de uso inútil — ou, na irônica expressão de Napoleão Mendes de Almeida, “verruciforme” — do referido pronome, como em construções do tipo “é preciso pensar-se nisso”, mas apenas de construção contrária à índole da língua portuguesa. Não pegou, apesar da consagração de Lima Barreto como escritor de gênio.