quarta-feira, 12 de março de 2014

Corrosão da personalidade, sintoma de morte da inteligência


Sidney Silveira

Todo processo de despersonalização implica uma corrupção maior ou menor do ato próprio da inteligência: conhecer. Em síntese, quanto menos uma pessoa conhece de si mesma e do mundo à sua volta, mais o caráter torna-se híbrido, mais a sua personalidade esfuma-se e mais se reduz a possibilidade de que enxergue a dimensão dos seus próprios atos. Por conseguinte, decai ao mínimo a chance de arrepender-se do que quer que seja. 

A razão é simples: o arrependimento não é outra coisa senão a luz da inteligência que põe a nu os erros cometidos no passado. Mas há precondições psicológicas e espirituais para que ele se dê, sendo a primeira delas a inteligência não estar depauperada por conceitos obscuros ou errôneos nem a vontade desgovernada por paixões sem freio, sobretudo as que afetam as instâncias superiores da alma — como o desespero e o medo, por exemplo.

A realidade que os cristãos sempre chamaram de “pecado contra o Espírito Santo” é o signo eloqüente de que a inteligência se perdeu decisivamente e só um verdadeiro milagre poderá restaurá-la, pois, chegada este ponto dramático, a sua tendência é cair numa espiral interminável de autojustificações. E mais: ambientada ao novo estado mental criado de maneira artificiosa e culpável, a inteligência há de tornar-se crescentemente maliciosa — ao ponto de projetar em tudo a maldade à qual sucumbe. Afogou-se no mundo das mentiras em que escolheu acreditar.

Ora, crer nas próprias mentiras é apenas o ponto intermédio de uma personalidade que perdeu a bússola da luz do intelecto natural, como chamava Santo Tomás ao conhecimento espontâneo dos primeiros princípios da razão especulativa. Daí às patologias mais graves é um salto automático, pois a alma vai perdendo o sentido de unidade e se pulveriza em átomos dispersos pelos quais a leitura dos dados provenientes do mundo real se torna problemática, ou mesmo impossível. O homem então vê o que quer, e não o que é: entre o seu universo psicológico interior e o mundo exterior criou-se um abismo, e o primeiro efeito disso é ele tornar-se incapaz de dar testemunho seguro de si mesmo, ou seja, enxergar os motores dos seus próprios atos. 

A isto chamamos corrosão da personalidade, geradora de transtornos os mais aflitivos. O indivíduo chegado a este estágio despersonaliza-se porque se tornou incapaz de contemplar-se no espelho da consciência. O drama desta doença pode ser mensurável pelo seguinte: fazer o caminho de ida às coisas e volta a si mesma é a propriedade básica de toda inteligência sã — a “reditio completa” pela qual o homem orienta-se à transcendência e retorna enriquecido à imanência do seu próprio ato de ser. É, em sentido análogo, como o “torna-te o que tu és” do poeta grego Píndaro, repto no qual vem embutida a premissa de que conhecer a si próprio e conhecer o mundo, no caso do homem, são realidades simultâneas e complementares. 

Ocorre que o doente do espírito ao qual este breve texto faz referência perdeu a capacidade de descrever-se com mínimo realismo, assim como de descrever o que está à sua volta. Toda a sua vida a partir deste ponto implicará uma espécie de forçosa auto-santificação e de demonização das demais pessoas, tendo por causa central a corrupção da inteligência. 

O fato de que esta doença do espírito hoje seja coletiva — e esteja espraiada indiscriminadamente pelo mundo ocidental — indica-nos o seguinte: a inteligência não está mais em perigo de morte, como escrevera o filósofo belga Marcel De Corte no último quartel do século XX. Ela está morta à espera da ressurreição, e se esta ainda for possível passará necessariamente pelo tesouro da filosofia de Tomás de Aquino. 

Filosofia esta que não é outra coisa senão o melhor anticorpo para preservar o senso comum imune aos ataques mais insanos de doutrinas filosóficas  indignas deste nome.