terça-feira, 15 de outubro de 2013

Penitência: doloroso caminho da sombra à luz



Ao jovem amigo Daniel Guilhermino

Sidney Silveira

A certa altura do clássico De Malo, Santo Tomás de Aquino afirma que as trevas não são o contrário da luz, mas a sua privação.[1] Noutras palavras, a escuridão é, em si mesma, nada — e o nada não pode ter contrários. Da mesma maneira, só podemos dizer por intermédio de uma analogia que a mentira e o erro são contrários à verdade: 

a mentira é essencialmente a negação expressa de algo sabido, e apenas acidentalmente é contrária à verdade. Em suma, que o negado conhecido seja contrário à verdade é contingente, mas não necessário: quem diga a um cego de nascença, por exemplo, que o azul do céu é vermelho não afirma algo contrário à verdade, mas diferente dela, pois as cores não têm contrários entre si.
o erro é essencialmente a ausência da adequação devida entre a inteligência e as coisas, e acidentalmente é o contrário da verdade. Muitos erros trazem inclusive verdades parciais, posteriormente aproveitáveis pela ciência no decorrer do tempo.

Expressemos as coisas com a maior simplicidade possível.

Exatamente como ocorre com a luz, a verdade não tem contrários no plano ontológico, mas tão-somente no lógico, e neste sentido se diz que o verdadeiro é contrário ao falso. E não poderia ser diferente, porque a falsidade não está nas coisas naturais ou artificiais, mas no entendimento que as julga erroneamente. Não por outro motivo, afirma o Aquinate numa famosa passagem do monumental De Veritate que as verdades das coisas são medidas pelo intelecto divino, do qual pendem. Ou seja, se tomamos como parâmetro o intelecto humano, as verdades são acidentais às coisas, pois o homem pode errar em seu julgamento e a essência das coisas continuará a ser o que é; mas se tomamos como parâmetro o intelecto divino, as verdades são intrínsecas às coisas, pois é a inteligência divina que as produz e as mantêm no ser.[2] A veracidade das coisas é, pois, reflexo da Verdade primeira, e se elas tivessem em si mescla de erro ou falsidade isto implicaria haver falhas na inteligência de Deus, o que excluímos por absurdo.

Observados estes breves pontos, digamos que uma vida espiritual genuína pressupõe o contínuo esforço do homem por manter-se na verdade. Ser veraz é, pois, árdua conquista à qual é impossível a qualquer um de nós chegar mediante esforços próprios, apenas: são necessários auxílios de ordem intelectual (aperfeiçoamento da inteligência pelo aprendizado contínuo em diferentes áreas do conhecimento), moral (aperfeiçoamento da vontade pelo aprendizado das coisas boas que devem ser escolhidas em detrimento das más), e, sobretudo, espiritual (a graça, ajuda vinda do alto). Viver na verdade é, pois, deixar-se entranhar pela Verdade primeira, Deus mesmo. E não fazê-lo é deixar-se culpavelmente vencer pelas próprias debilidades.

Neste contexto, se por pecado original entendemos a tendência do homem à mentira, ao erro e à maldade, ninguém nos peça para trazer evidências quanto a isto; negá-lo seria estupidez pura e simples (abramos uma só página de qualquer grande jornal e sintamos o odor do abismo, ou seja, da corrupção e das atrocidades dos homens). Só os estultos ou as pessoas imaturas contemplam a natureza humana com demasiado otimismo, pois todos falhamos por vícios, ignorância ou malícia. O apaixonado sucumbe às fraquezas; o ignorante perde bússolas pelas quais poderia orientar-se melhor; e o malicioso escolhe o caminho errado em troca de vantagens pessoais. Quando não há mais vantagem a obter, restam ao malicioso o desespero, o ódio e a vontade macabra de trazer os demais para a agonia em que jaz.

A mescla desigual dessas três realidades existe em cada um de nós: somos mais ou menos viciosos, mais ou menos ignorantes e mais ou menos maliciosos. Quem não enxerga que a falibilidade circunscreve toda a débil e fugaz existência humana neste vale de lágrimas é um tolo, alguém que sequer deu o primeiro passo para ficar espiritualmente de pé. E não enxergar bem a si próprio é uma maneira de enxergar mal o mundo, perder o senso de proporções e de realidade. Por sua vez, enxergar mal o mundo implica cair, cedo ou tarde, numa espécie de nostalgia ilógica do caos, deixar a mente perder o sentido de unidade que lhe é próprio e sucumbir ao desgoverno de uma imaginação cada vez mais apartada do real.

Qual é, pois, a primeira conseqüência desse estado? Assim como sucedeu ao filho pródigo, o sujeito perde a noção das prioridades, das urgências — o que é fatídico, pois toda a vida espiritual consiste justamente numa hierarquização das urgências. No fazer com que estas coincidam com as coisas importantes, e as coisas importantes coincidam com as necessárias. Esse caminho só chega a bom termo quando o homem compreende o seguinte: Deus é urgentíssimo, pois é o único verdadeiramente necessário, sem o qual nada existiria. Todas as demais urgências são relativas a esta. “Buscai primeiro o reino dos céus e a sua justiça, e tudo vos será dado em acréscimo”, ensina Nosso Senhor. Quem não entende isso está mutilado para compreender a dimensão sacrifical do amor.

Estar ciente da miséria de sua condição faz o homem chorar, e bem-aventurados os que choram, pois serão consolados. Daí dizer Santo Agostinho, no livro De Sermone Domini in Monte, que essa bem-aventurança expressa no Evangelho está associada ao dom da ciência. E a tal choro humilde de reconhecimento da própria pequenez os cristãos deram o nome de contrição dos pecados, estado psicológico prévio para o encontro pessoal com a misericórdia divina. Trocando em miúdos: só uma alma contrita pode obter o perdão; em contrapartida, a alma orgulhosa acaba perdendo-se neste mundo, e provavelmente também no outro, pois de pequenas prevaricações e impenitências chega ao fim da vida com o espírito fechado à ordem da graça, e então só mesmo um milagre grandioso pode evitar a morte em impenitência final.

O sacramento da penitência não é instrumento de autoconhecimento, mas o perdão objetivo de Deus, que salva a alma da perdição. O autoconhecimento mínimo das próprias debilidades é na verdade condição prévia, e não o fim a ser buscado. Até porque o cristão sabe, por fé, que no céu o conhecimento de si e do universo inteiro será perfeito, ou seja, obtido a partir da visão da Causa Primeira. Esse conhecimento será uma dádiva à qual a Igreja Católica, e com ela Santo Tomás, chama de visão beatífica da essência divina. Trata-se de uma vida na verdade, com a verdade e para a verdade.

Chegar a essa vida é de graça.

Basta pôr Deus em primeiro lugar, nunc et semper
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1- Tomás de Aquino, De Malo, I, art. 1, ad.5.
2- “Sed veritas, quae de eis dicitur in comparatione ad intellectum divinum, eis inseparabiliter concomitatur,  cum nec subsistere possint nisi per intellectum divinum eas in esse producentem”. Tomás de Aquino, De Veritate, I, art. 4, resp.