terça-feira, 14 de maio de 2013

Deus, pilar metafísico do matrimônio


A Carla Gomes
“Um amor não firmado em Deus, por mais que viva, vive a morrer”.
Sidney Silveira
Dizia Santa Teresa d’Ávila que este mundo é uma hospedaria barata, razão pela qual não podemos levá-lo demasiadamente a sério, nem nos deixar prender por seus laços, sobretudo quando estes nos afastam de Deus, pelo pecado — malogro da inteligência e da vontade desviadas dos seus objetos formais: a verdade e o bem.
Para a notável mística do Carmelo, assim como para o Magistério da Igreja, somos peregrinos rumo a uma dimensão que transcende à corruptibilidade — instância onde o amor de Deus mantém as coisas no ser. A propósito, o advérbio “onde” é impreciso para definir tal realidade, pois o Todo que é tudo não cabe em lugares: Deus é absolutamente trans-total, supra-local. É a totalidade sem partes quantitativas, meta-dimensional, super-essencial. Trata-se, pois, de uma analogia, ou seja, o recurso de denominar pelo mesmo nome — no caso, a palavra “onde” — realidades distintas quanto à essência, porém relacionadas segundo certa proporção conceptual. Ocorre que, em Si mesmo, Deus é o agora eterno impossível de circunscrever-se pelo espaço. N’Ele não existe onde.
Pois bem. Na medíocre hospedaria do mundo alberga-se o amor humano, que, como insinuava o Padre Antônio Vieira, é feito de corações de cera. Por isso o tempo atreve-se a gastá-lo, a maltratá-lo, a impor-lhe as fadigas do uso continuado, a letargia do tédio. Em síntese, um amor não firmado em Deus, por mais que arda, é fagulha; por mais que cresça, é nanico; por mais que satisfaça, não sacia; por mais que apraza, dói; por mais que preencha, tem lacunas; por mais que viva, vive a morrer. Assim é o amor humano: ele só se torna perdurável, perene, ao ancorar-se n’Aquele que está além de todas as durações. Caso contrário acaba tornando-se um grilhão, e muitas vezes o justificamos apelando culpavelmente às nossas próprias debilidades.
O amor que tem como pilar a Deus não é fuga em busca de conforto psicológico ou de catarses fisiológicas, mas o êxodo das potências superiores da alma em direção ao mistério. E isto não são trevas, pois o amor mesmo é a luz que dá sentido às coisas, sem contudo revelar como haure o seu próprio sentido. Ora, se a medida do amor é amar sem medida, como dizia Santo Agostinho, leve-se em conta que a sua semelhança com Deus é ser partícipe da infinitude, quer dizer, do Incomensurável não passível de ser medido. Noutra formulação, o amor é a infinitude de Deus participada às criaturas dotadas de inteligência e vontade abertas ao influxo deste “raio de trevas luminosas”, expressão com que se referia a Deus o Pseudo Dionísio Areopagita, grande neoplatônico cristão. No amor, e somente nele, o homem chega à interseção entre o tempo e a eternidade.
Se as coisas são como aqui se descrevem, é lógico deduzir que o sentido do verdadeiro amor conjugal — como de qualquer outro amor — é Deus. Assim, não pode haver casamento, em sentido próprio, fora do sagrado amor de Deus; pode, isto sim, haver entendimento circunstancial entre os corpos, união civil, união até de almas, porém frágil porque baseada no que é instável, e nada tão instável e sujeito a crises como o coração humano, quando abandona-se a si mesmo.
Profanar o matrimônio tem sido prática continuada das sociedades de nossa era globalista, na qual só um cristianismo fake pode ter lugar, como o das seitas evangélicas e o de uma Igreja Católica magisterialmente tíbia, infiltrada por elementos alienígenas que a minam por dentro. Era fechada ao mistério e, portanto, à luz benemerente do amor.
Que chamemos, pois, a qualquer união entre duas (ou mais) pessoas de “casamento”, é apenas um dentre tantos signos distintivos do declínio civilizacional em que caminhamos. Da perda da noção de que o matrimônio tem como pilar metafísico o Próprio Ser Subsistente, daí que alcance uma intimidade para muito além da dos corpos, embora também abarque este plano físico, que tem a sua bondade e a sua funcionalidade próprias.
Numa época tão materialista e hedonista, consolam-nos as palavras de São Paulo segundo as quais “o amor jamais acabará”. Ele é maior que o mundo.
É a razão de ser do mundo.