quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A felicidade e o mundo


Ao amigo Sérgio Pachá.
"O mundo quer ser enganado; portanto, que o seja".
(Mundus vult decipi; ergo decipiatur.)

Frase atribuída a Petrônio.




Sidney Silveira
Em meio às efemérides desta vida, o estado de espírito a que normalmente chamamos “feliz” é artigo raro. Na maior parte dos casos, como mostra a experiência, não se dão concomitantemente as circunstâncias externas (políticas) e internas (psicológicas e gnosiológicas) sem as quais a felicidade humana se transforma em pura e simples impossibilidade.
Se a felicidade neste mundo é, como a definimos, a posse habitual do bem — para a qual se exige o uso virtuoso das potências superiores da alma, assim como o concurso da instância sensitiva —, e havendo no mundo uma escala de bens que trazem alegria e repleção em diferentes graus, alcançar tal estado requer circunstâncias externas favoráveis e fatores internos predisponentes. Isto porque os bens, sejam sensíveis ou inteligíveis, só podem ser alcançados se as potências da alma que os captam operarem em congruência com os princípios de sua natureza. Um defeito nas papilas gustativas da língua, por exemplo, impede a apreciação dos sabores; um defeito na vontade acarreta escolhas viciosas; e, na inteligência, dificulta a posse da verdade.
Não acalentemos ilusões: para o homem ser feliz é preciso vencer o mundo [1] e vencer a si próprio. Mas é impossível alguém vencer o mundo — no sentido de desprezar as ofertas corruptoras da inteligência e da vontade, às quais a tradição cristã chamou tentações — se antes não procura vencer a si mesmo colocando-se em guarda contra os vícios internos e as más inclinações, pedras de tropeço até para as almas mais bem dispostas. Daí poder dizer-se que a felicidade é para os fortes, e não para os pusilânimes (ainda quando a pusilanimidade esteja oculta pela obstinação e por ambições desmedidas), pois sem o dom da fortaleza o homem é incapaz de dizer “não” aos bens aparentes ou desordenados que o mundo oferece, e não consegue enxergar o que em sua alma precisa ser corrigido, melhorado, superado, lapidado para chegar à maturidade espiritual.
Em boa lógica, de dois contrários, se um é perfeitíssimo, o outro se anula. Assim, não pode haver felicidade perfeita onde há males, pois os males trazem infelicidade em algum grau. Ora, neste mundo é impossível ao homem viver sem ter contato com males externos ou internos: ele perde coisas e pessoas que ama, é premido por paixões muitas vezes cegantes, tem de lidar com situações políticas adversas, sua saúde deteriora, etc. Logo, a felicidade perfeita, neste mundo, é absolutamente impossível. Para ela se dar de maneira efetiva, seria necessário que os bens não se perdessem — a começar pelo bem da vida. Mas por ora não estamos falando da eternidade, a qual está pressuposta no conceito de beatitude ou bem-aventurança, e sim deste vale de lágrimas, de enganos e corrupção. Prossigamos, pois, mas não sem antes consignar que um dos motivos da depressão coletiva nas sociedades atuais é crerem em conceitos quiméricos de felicidade nunc et semper.
A propósito, para se entender como, em lógica, dois contrários podem excluir-se mutuamente, é preciso no mínimo ter passado os olhos na tábua das proposições de Aristóteles, para não falar noutras lógicas, não-aristotélicas. Sem isto não se deu sequer o primeiro passo para ordenar os raciocínios, que são o modo propriamente humano de conhecer. A lógica é serva das demais ciências no sentido de que todas fazem uso dela, e é por meio dessa arte que se extraem corolários a partir de princípios ou evidências. Assim, que gente com vocação para asno opine sobre altas questões — acerca das quais sequer consegue pensar retamente, ou seja, com lógica — é um mal impossível de excluir enquanto não se estiver no céu. Neste mundo é preciso suportar a infelicidade de, vez por outra, discutir com um tipo desses. Não raro, o professor contemporâneo tem a clara sensação de que dá aulas para hunos, visigodos ou “cimérios” da era pré-cataclísmica, e diante de Conan, o Bárbaro, não há lógica que sobreviva e não dá para ser feliz. Que o digam os professores que hoje apanham dos alunos em sala de aula...
Com relação aos fatores externos que podem impedir a felicidade, interessa-nos mencionar a ordem política. Esta pode adquirir uma conformação tal, que se volte contra a natureza intelectivo-volitiva dos cidadãos. É quando as leis se desnaturam enquanto regra e medida dos atos humanos, até se esvaziar de qualquer estatuto ontológico, descambando ora no positivismo, ora no formalismo, ora num falso jusnaturalismo — ou na tirania pura e simples. Muitas pessoas, lesadas pelo espírito individualista liberal, indagarão: que diabos tem a ver a felicidade com a ordem política? A isto respondemos: tudo, pois a felicidade, como posse habitual do bem, pressupõe que esta não esteja impedida pela conjuntura política, daí dizer tão belamente o Papa Leão XIII, num famoso texto, que o primeiro dever do Estado é para com a alma dos cidadãos.
No século XVII, defendia o teólogo tomista Francisco de Araújo, da famosa escola de Salamanca, que as leis são produto da prudência política, virtude sem a qual as sociedades acabam tornando-se caóticas e autofágicas. Assim, em qualquer Estado, as leis são a autoridade por meio da qual se prescrevem coisas convenientes à sua conservação, e se proíbem coisas nocivas ou contrárias a ela. Mas numa terra onde as leis se voltam contra o bem comum, ou seja, contra aquilo que lhes dá unidade e coesão, a vaca vai para o brejo em maior ou menor velocidade. E, perdida a noção de bem comum, a tendência é as leis se multiplicarem e os cidadãos se voltarem uns contra os outros, arrogando-se direitos em progressão geométrica.
Ora, o fim último da lei, a sua razão de ser, é a paz social, ainda que esta seja sempre assintótica e imperfeita, num mundo tão mutável e inconstante. Seja como for, numa sociedade onde se multiplicam as leis, os principais inconvenientes, segundo Araújo — em seu comentário ao tratado da lei na Suma Teológica —, são os seguintes:
Ø  Os cidadãos se tornam incapazes de cumprir todas as leis fundamentais, na medida em que umas leis se voltam contra as outras;
Ø  Uma multidão de leis traz, como conseqüência, a falta de crença dos cidadãos nelas, ou seja: induz-se ao desprezo ou desrespeito às leis;
Ø  Os litígios se multiplicam onde há muitas leis, o que é sinal de um Estado depravado, que estimula e/ou instaura costumes perversos.
Quando, pois, Santo Tomás afirmava, contemplando a Aristóteles, que o fim da lei é melhorar os homens — e por conseguinte, dizemos nós, aproximá-los do estado de felicidade possível neste mundo —, tinha em vista o seguinte: as leis a um só tempo prescrevem o bem e proíbem o mal, tanto para a sociedade como para os indivíduos. E, ao fazê-lo, se tornam regra e medida dos atos humanos. Neste contexto, uma lei que prescrevesse o mal e proibisse o bem seria iníqua, e portanto só poderia ser chamada de “lei” por uma imprópria analogia de atribuição; neste caso, os cidadãos estão desobrigados de cumpri-la. Quando os cátaros, por exemplo, proibiam entre si a procriação (o mais terrível ato, segundo eles) e o matrimônio, assim como prescreviam o suicídio (signo de homens “perfeitos”), estatuíam entre si leis contrárias ao bem comum social. Portanto, se a sua seita crescesse traria o caos, a destruição.
Diga-se que, na prática, também é impossível chegar à perfeição política neste mundo. Portanto, a felicidade não pode ser fruto da ordem política, embora esta deva ter uma configuração tal que não vá contra essa fundamental busca da alma humana por repouso no bem. Em poucas palavras, o bem político é necessário, porém insuficiente, para a felicidade, entre outras coisas porque a política é feita por homens; e nestes, como diziam os grandes teólogos, existe uma lei que é a lenha para o pecado (fomes peccati), tendência ao erro chamada de “mancha do pecado original”. Não é preciso ter fé para observar essa universal tendência; basta olhar o mundo, com as suas mentiras e maldades. A propósito, essa tendência não é absoluta, mas uma doença que se dá num organismo, de per si, bom. Se fosse absoluta seríamos maus por natureza, o que noutro texto podemos provar ser absurdo.
Esta é uma espécie de lei às avessas. Expliquemo-nos: se o vício é algo que, por inclinar ao mal, vai contra a reta razão, parece que não pode ser dito lei. E mais: se é próprio da lei induzir o homem ao cumprimento dos deveres que a sua natureza intelectiva é capaz de compreender, algo que atente contra tal propriedade parece não ser lei. A isto responde Santo Tomás: a fomes peccati tem caráter de lei penal, ou seja: foi a pena infringida por Deus aos homens, por se desviarem do bem. E infringir penas, lembremos, é uma das propriedades essenciais da lei.
Aqui estamos no âmago da teologia moral, a qual tem em vista a lei eterna, pela qual Deus governa o mundo, e a lei divina, promulgada na Sagrada Escritura, seja no Antigo Testamento (lei mosaica, expressão da lei natural), seja no Novo Testamento (lei evangélica, expressão da lei sobrenatural da Graça). É fato ter havido teólogos, como Duns Scot, que negaram o caráter de lei natural à maior parte dos Dez Mandamentos, mas esta é outra discussão...
Para o que nos interessa, fiquemos com a circunstância de que ser feliz neste mundo é superar obstáculos internos e externos, o que requer certo heroísmo, a menos que consideremos a felicidade como a simples adição de momentos de gozo, ao modo hedonista, mas isto nos levaria a aporias irresolvíveis. E reitere-se o seguinte: como não se pode superar materialmente todos os obstáculos, a felicidade por aqui será sempre limitada, contingente, imperfeita.
Apesar disso, se o mundo quer ser enganado — como diz a epígrafe acima —, a melhor forma de enganá-lo é ser feliz, ainda que de forma parcial. Para chegar lá é preciso ser derrotado, sacudido, massacrado por ele, mantendo íntegras, tanto quanto possível, as faculdades físicas e psíquicas. Ocorre ser impossível alcançar tal estado sem se buscar a Deus — bem supremo cuja posse nos dará uma felicidade não habitual, como neste mundo, mas atual, perene.
Algo parecido com o que dizia Boécio sobre a eternidade:
A posse total, perfeita e simultânea da vida interminável (interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio).
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1- “No mundo conhecereis provações, mas tende confiança: eu venci o mundo” (Jo. XVI, 33).