terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Niemeyer e o êxtase de Narciso

Igreja de São Francisco de Assis, em BH.

À sagaz amiga Natália.

Sidney Silveira
A beleza está no vértice da realidade. Mas não apenas como esplendor das formas captáveis pelos sentidos, e sim como manifestação de aspectos transcendentais do ser, acessíveis ao espírito. Ela encerra a relação de conveniência, ou de sintonia, entre uma propriedade universal do ser e a inteligência que a contempla. Se a beleza é, pois, agradável aos sentidos, a começar pela visão (pulchra dicitur quae visa placent, afirmava Santo Tomás), é porque todas as suas notas distintivas — como ordem, harmonia, proporção, integridade, inteligibilidade, etc. —, ao maravilhar o espírito, acarretam salutar refluência deste sobre as potências sensitivas. Daí dizer-se que a beleza é aprazível, da mesma maneira como a feiúra, a desordem, a desproporção, a ininteligibilidade e as imperfeições são, em geral, repugnantes.
O impacto sensorial causado pelas coisas verdadeiramente belas, às quais ninguém é indiferente, não implica que a beleza não possua razões. Ao contrário, onde não há inteligência não pode haver beleza em sentido próprio; um ruminante na catedral de Notre Dame ou diante de um poema de Camões estará na mesma situação existencial daquela do curral onde vive: mascando o seu capim com olímpica indiferença. Em suma, quanto mais corrompida estiver uma inteligência, menos capacitada estará para a fruição da beleza, pois esta não se detém no aspecto sensível, conquanto o abarque. Neste contexto, podemos dizer que, se não alcançasse nenhuma inteligência, o fulgor das coisas belas se desvaneceria, tornar-se-ia inócuo. A beleza existe para conduzir as criaturas inteligentes ao êxtase, à pletora de amor.
As intermináveis homenagens midiáticas recebidas na última semana por Oscar Niemeyer, assim como a sanha dos críticos que enfatizaram o seu comunismo para desmerecer-lhe a obra, nos levam a uma indagação: algum dos lados teria, de fato, razão? Seria a arquitetura de Niemeyer realmente bela e genial? Seria a arquitetura de Niemeyer prejudicada por sua adesão a uma ideologia assassina, intrinsecamente feia? Na quase totalidade dos casos, tanto as louvaminhas monocórdicas como os ataques ferinos passaram ao largo da obra mesma do arquiteto, como se fora coisa de menor importância, o que denota o aterrador sintoma da incapacidade média de apreciação hoje imperante — espécie de patologia coletiva do nosso tempo.
Pois muito bem. Uma das características da modernidade é a mutilação do espírito, aquilo que o filósofo Giovanni Reale chamava de dissolução das formas, conceito que podemos traduzir dizendo o seguinte: no mundo onde o nada se transformou em valor, os homens são chamados a adorar o vazio — espécie de vocação às avessas, feita de um torpor anêmico totalmente distinto do pasmo, do desfalecimento dos sentidos experimentado por quem, ao contemplar a beleza em sua real dimensão, mantém os olhos da alma abertos. A título de exemplo, inapetência espiritual é o que sente quem entra numa igreja projetada por Oscar Niemeyer: ali, nada conduz nem induz o homem a persignar-se, dobrar os joelhos e se prostrar perante a Suma Beleza. São templos irreligiosos em sua sinuosidade simplista, onde o belo (demos, a título de procedimento dialético, que o seja), justamente por ser antifuncional e infantil, não possui a reta ordenação ao bem, outro transcendental do ser.
Noutras palavras, nessas igrejas as formas de grandiloqüentes curvas são um fim em si mesmo, e não um meio conducente a uma ordem superior, como deve dar-se num templo. A propósito, a riqueza de qualquer forma artística é referir-se a algo que não é ela mesma, mas ser ícone, símbolo de realidades que a transcendem. Da Epopéia de Gilgamesh aos Lusíadas, dos templos góticos às polifonias de Bach, do canto gregoriano ao D. Quixote, da Pietà de Michelangelo ao Réquiem de Mozart, a grande arte sempre serviu como veículo para a elevação do espírito, pois a excelência tira o homem do marasmo, da zona de conforto, obriga-o a dar o primeiro passo para cumprir o famoso repto do poeta grego Píndaro: “Homem, torna-te o que tu és”. Em suma, a excelência leva-o a se confrontar consigo mesmo e a colocar o mundo em perspectiva.
Por sua vez, a obra de Niemeyer, vista em seu conjunto, padece da mesma frívola auto-referência formal encarnada na estética das suas igrejas. Basta olharmos as obras assinadas por ele: do sambódromo, no Rio, ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói; do edifício Copan, em São Paulo, aos prédios mais famosos de Brasília; do Museu Niemeyer, em Curitiba, à sede do Parlamento Latino-Americano, em São Paulo. Trata-se da mesmíssima obra repetindo-se com alguns diferentes matizes, demarcando um estilo que apela ao traço fácil de formas arredondadas e — o que é pior — faz delas a razão de ser das obras. Então, o que seria um recurso acaba por se transformar num sestro, num truque análogo ao do cantor que, dominando a técnica do vibrato, abusa dela e faz das canções que interpreta algo insuportável de ouvir.
A arquitetura de Niemeyer é a manifestação do anti-sublime. É, portanto, o signo perfeito de uma época desespiritualizada na qual a arte se transformou, definitivamente, em sucedâneo da religião, além de muitas vezes misturar-se com a política naquilo que esta tem de pior. Época em que a inapetência para a beleza e a volúpia pelo vazio, pelo pueril, dão-nos notícia do secreto desdém do homem por si mesmo. Um homem que, sem o alimento da beleza e do bem, perde o próprio sentido de unidade e se angustia ao  julgar-se heideggerianamente circunscrito pelo nada.
As monótonas curvas de Niemeyer não são, se as olharmos desapaixonadamente,  uma vitória da simplicidade, como a princípio poderia parecer, pois a simplicidade é sempre a suada conquista da inteligência que escava a inesgotável complexidade do real e extrai dela uma seiva superiormente vivificante.
Elas representam a derrota da beleza — perdida no exato momento em que, embebida na contemplação das próprias formas, como Narciso, se imobiliza.