sábado, 6 de outubro de 2012

O boçal engajado e a máquina de devorar consciências


Sidney Silveira


A falta continuada de contato com coisas belas e elevadas mutila a alma. Os dois sintomas mais evidentes de que uma pessoa chegou a tal dramático estado são os seguintes: extasiar-se com tolices e ser indiferente ao sublime. Não raro, são sintomas concomitantes num mesmo sujeito — que se superexcita com ninharias, futilidades ou torpezas, enquanto se mostra apático diante de qualquer beleza de ordem superior. Trata-se de alguém capaz de se entediar mortalmente ouvindo uma sinfonia de Bach ou lendo um parágrafo de Vieira, ao passo que sente arrepios de entusiasmo beatífico ao ouvir uma rima bem feita cantada em ritmo sincopado.

Estamos falando de um arquétipo contemporâneo: o boçal engajado. Pessoa de espírito lânguido, em geral ávida consumidora de produtos culturais alternativos cuja esterilidade artística pode ser medida pela tola pretensão de originalidade. Não se trata, propriamente, de um iletrado ou de alguém oriundo das camadas sociais menos favorecidas. Não: o boçal engajado é homem de classe média, habitué de feiras literárias, freqüentador de bienais de livros, encontros artísticos performáticos e exposições. Tem interesse por leitura, sim, mas sem jamais arriscar-se em autores que ou exijam de sua inteligência um maior esforço abstrativo, ou fujam ao limitado universo estético-político em que se embrenhou.

É, no fundo, uma personalidade timorata que precisa apoiar-se na opinião de grupos ou facções, em meio às quais se sente encorajado a manter o dedo em riste para o mundo, sobretudo como crítico da cultura e da política. As suas convicções são, pois, tanto mais altissonantes quanto mais estejam protegidas pela coletividade a que aderiu apaixonadamente. Palavras gastas como “reacionário” e “careta” ainda são recorrentes nos lábios do boçal engajado — em geral um sujeito simpático a ideologias socialistas e que defende todos os tópicos da agenda globalista contemporânea: aborto, casamento homossexual, ecumenismo, marcha das vadias, aquecimento global, etc. E ai de quem esboçar objeções ao que ele jura de pés juntos serem convicções suas!

Em verdade, o boçal engajado nem de longe imagina ser o produto acabado da sociedade orwelliana em que nos coube viver. É, pois, um autômato a repetir slogans, palavras de ordem e conceitos produzidos pela engenharia social que se apossou da sua consciência, não obstante dando-lhe a febril ilusão de liberdade, capacidade decisória e autonomia espiritual. Neste contexto, malgrado a sua patente curiosidade — medida pela busca constante por se informar até a embriaguez acerca de coisas “interessantes”—, a imersão do boçal engajado em baladas culturais é o fiel retrato de uma candente incapacidade reflexiva, pois o padrão mental em que sucumbe está enquadrado nas bitolas pré-moldadas por certa indústria do entretenimento, voltada a públicos com pretensões vanguardistas e libertárias.

Mentalidade adubada no espírito libertino procedente dos iconoclastismos revolucionários da década de 60, ele considera verdadeiramente geniais autores como Marcuse, Lacan, Deleuze, Sartre, Paulo Freire e diversos outros conformadores das últimas gerações. Mas se porventura o inquirimos com o intuito de aquilatar o seu nível de conhecimento a respeito da obra destas ilustres figuras, constatamos não passar de leituras esparsas de pensamentos ou conceitos isolados, geralmente feitas de segunda ou terceira mão, ou seja: em livros de comentadores que repetem os “dogmas” dos seus ídolos como mantras irredutíveis a qualquer análise um pouco mais criteriosa.

Se o boçal engajado ouve, por exemplo, um lacaniano dizer que o único e verdadeiro amor de uma mãe pelo seu filho acontece quando ela morre no parto, acha isto de uma criatividade sem tamanho. Ou então se vê um sartreano proclamar que a liberdade do homem é construir o seu próprio ser, e que o “Em-si” muitas vezes decai num processo de nadificação em direção ao “Para-si”, cai fulminado de amor místico diante do Ininteligível. Tais frases são edulcoradas numa espécie de psicodélica beberagem, e depois saboreadas, sorvidas, degustadas pelo boçal engajado como um olímpico manjar. A idéia que ele faz da filosofia é, como se pode deduzir, a de doidões fumando ópio e exercitando a inebriante debilidade das suas próprias inteligências.

A irreligião do boçal engajado é um bloco de conceitos auto-referentes, contemporaneamente pinçados dos livros de um Richard Dawkins ou de um Michel Onfray, autores da moda cuja leitura, de sua parte, é tão ou mais superficial do que a que teve a oportunidade de experimentar dos gurus acima mencionados. Portanto, quando ateu, o boçal engajado é o materialista que usa o espírito para perpetrar toda sorte de negações, a ponto de ter o próprio bom senso esmagado pela massa assimétrica de idéias avulsas que, repetidas à exaustão, formam uma imagem inexpugnável em sua mente: a de que a religião é algo irracional. Imaginemos, pois, o que acontece se algum desavisado lhe mostra que uma parcela grandíssima das maiores criações humanas — na filosofia, na música, na arquitetura, na pintura, na escultura, no direito, na poesia, na ciência, etc. — provém do mais profundo espírito religioso...

O fragor de sua inépcia mental tem como invólucro um insano otimismo, sobretudo com relação à reforma política das sociedades a partir das idéias que defende — as quais, de antemão, elevou à condição de verdades universais intocáveis. Assim, com a psique emparedada em tal universo, não é tão raro o boçal engajado subir de degrau na escala da esquizofrenia e se transformar num boçal engajante, ou seja: alguém com discurso violento a arregimentar prosélitos e incautos, não raro apelando ao expediente da detração dos adversários, aos quais são aplicadas as etiquetas que ele julgar apropriadas, conforme as situações se forem apresentando.

Quando apóia campanhas de desarmamento, o boçal engajado se sente um Mahatma Gandhi redivivo a pregar a não-violência, enquanto consome e propagandeia todo tipo de filme, música ou literatura em que a violência beira o infernal, alimentando as potências superiores de sua alma — inteligência e vontade — com imagens prenhes das mais macabras e hediondas possibilidades humanas, que, expostas “artisticamente”, acabam por se difundir nas sociedades. Acontece que, como entronizou a liberdade de expressão como ditame fundamental de sua febril existência, o boçal engajado quebra lanças quando, por exemplo, alguma autoridade sensata proíbe a exibição de películas como A Serbian Film, na qual a mais inocente cena é a do estupro de um bebê que acaba de sair da barriga de sua mãe.

Em síntese, a mente deste opiniático personagem é uma selva impossível de debastar, porque foi alimentada com todo tipo de filosofias da insanidade e de estéticas surreais — em que o belo é uma espécie “antitranscendental” do ser, pois tem pouco ou nada a ver com a realidade das coisas e do espírito. Daí o fato de o boçal engajado não conseguir perceber, por exemplo, que uma sociedade em que nada é censurável está fadada à autodestruição; não será sequer uma “sociedade”, na acepção da palavra, mas o vale-tudo hobbesiano que acaba por deflagrar a luta de todos contra todos. Com a advertência de que, em Hobbes, este é absurdamente o estado “natural” do homem, mas na verdade tipifica o estágio em que a natureza humana se desfez quase por completo, sobrando-lhe apenas a casca de suas reais potências.

O boçal engajado é pan, metro, supra, homo, meta, pluri, hiper-sexual. Noutras palavras: a sua capacidade de protagonizar façanhas eróticas jamais vistas desde a criação do mundo é simetricamente proporcional à sua incapacidade de ordenar a mente. E isto não é uma metáfora, pois a neurociência tem mostrado o quanto a devoção à pornografia e a um erotismo exagerado causam uma pavloviana supermemória — canalizada apenas para dar vazão ao sexo transformado em vício. Resultado: a estimulação mental quase sem descanso ao sexo causa graves deficiências no córtex frontal, área do cérebro ativada quando o homem engendra raciocínios lógicos ou cognições mais complexas, toma decisões importantes, organiza seu discurso, etc.[1] Daí as freqüentes depressões, insatisfações existenciais, dificuldades de concentração, ansiedade e falta de motivação em uma pessoa com o perfil do boçal engajado, que metaforicamente ejacula o cérebro no samsara pornográfico em que jaz.

Haveria muitas outras características a destacar a respeito deste arquetípico homem do nosso tempo, como por exemplo a sua maior propensão a ser manipulado pelas técnicas de propaganda política — tão usuais desde que o mundo se transformou numa sociedade de massas. Mas encerremos este texto apenas observando que o boçal engajado é, fundamentalmente, a subespécie de um boçal muito mais refinado, e por isso superiormente deletério: o boçal liberal. Este último é a indômita e caótica mescla de várias idéias revolucionárias norteadoras dos séculos XX e XXI.

Entre outras coisas, o boçal engajado é irreligioso, como acima apontamos, mas o boçal liberal é o corruptor dos princípios da religião e da civilização, com a promessa de que, se o homem contemporâneo comer dos frutos por ele oferecidos, será livre, autônomo, poderoso. O seu primeiro princípio é retirar Deus das sociedades, na forma da lei, defendendo que os planos material e espiritual são realidades separadas por um abismo infinito. Ora, se o homem pode governar-se autonomamente, por que também não o podem as sociedades? 

Assim pensa este sujeito que, consciente ou inconscientemente, opera a máquina de devorar consciências concebida pelo espírito maligno que — segundo dizem — reside entre o tempo e a eternidade. 

E atende pelo nome de 666.
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1- Recomenda-se, para entender este mecanismo, a leitura do site Your Brain on Porn, onde há uma excelente bibliografia indicada. Nesta mesma linha, sobre o processo de estupidificação a partir das deformações da sexualidade humana, um grande amigo recomenda o livro Sexual Sabotage, de Judith Reisman.