sábado, 11 de fevereiro de 2012

O fanático e a filosofia


Sidney Silveira


O fanatismo pode definir-se como a paixão insana de servir a uma idéia, a uma causa, a um partido, a uma seita ou facção. Quase sempre, o fanático é um arremedo de místico que se julga inspirado por verdades de ordem superior — que pretende impor a qualquer custo a todos os demais. E não nos enganemos: há o fanático na ciência, na política, na religião, na filosofia e até mesmo na literatura. No caso da filosofia, trata-se sempre de um intruso com intenções proféticas, um visionário que persuadiu a si mesmo de haver decifrado os mais secretos arcanos da ordem do ser. Isto, evidentemente, graças a alguma espécie de obscura “revelação”.


A etimologia da palavra “fanático” indica muito bem as características acima descritas: vem do latim fanum (templo, lugar sagrado). Na antiguidade, aplicava-se às pessoas que viviam fazendo discursos e imprecações nos templos, ou seja, àqueles que se imiscuíam nas coisas sagradas de forma eloqüente e obstinada, conformando-as irresponsavelmente às suas próprias idéias. Daí que fanum também tenha originado o vocábulo “profano”, ou seja, o desrespeitador das verdades divinas — que por isso mesmo deve ser posto adiante (pro), no sentido de fora, do templo (fanum). Em resumo: o fanático é uma espécie de profanador da verdade.


Distingue-o dos simples utopistas o fato de que estes últimos são apenas homens iludidos por conceitos quiméricos, ao passo que o fanático tem a pretensão de ser iluminado, motivo pelo qual se exaspera diante de qualquer resistência ou contrariedade — imediatamente tida por ele como satânica aversão à verdade da qual se julga privilegiado portador.[1]dos simples charlatães distingue-o a virulência na ação, pois o vigarista clássico só procura obter vantagens em benefício próprio, e geralmente é um sujeito afável em suas cretinices, ao passo que o fanático pretende converter todos às suas idéias, e, quando não consegue, a reação é brutal.


O fanático é, portanto, muito mais agressivo e letal que o charlatão, e muito mais pretensioso e obstinado que o utopista, pois o utopista é um sonhador por excelência, e o fanático, homem de ação, arregimentador de grupos — desde que ele esteja à frente, é claro. Na verdade, é bastante comum o fanático reunir em torno de si os utopistas, pessoas habitualmente desgostosas com o real world. E quanto mais irrealizáveis ou cobiçosos forem os “ideais” do fanático, mais atraente parecerá ele aos olhos do utopista.


Existem charlatães, certamente, que assim como os fanáticos se dizem iluminados por sublimes verdades — que o digam alguns líderes de seitas “evangélicas” contemporâneas. Mas o charlatão típico possui um instinto de preservação que não lhe permite ultrapassar certos limites e códigos socialmente aceitos, ao passo que o fanático — enceguecido por suas próprias idéias — é flagrantemente imprudente, embora iluda a si mesmo e aos que o circundam de que os seus atos temerários são um signo de coragem e heroísmo. Em resumo, o fanático é megalomaníaco e impulsivo; comparado a ele, o charlatão é mais modesto em seus objetivos e mais frio em suas fraudes. Há, como se vê, um mecanismo de neurose em toda alma fanatizada, pois ninguém chega a tal estágio de loucura sem mentir muito para si mesmo.


Estabelecidos estes pontos, torna-se evidente o seguinte: paira sobre todo fanático a nuvem negra do orgulho. Há nele um eriçado amor-próprio que deixa a alma sempre de prontidão contra inimigos reais ou imaginários. E mais: se não os possui, necessita fabricá-los. Por isso maneja com certa destreza o imoralíssimo argumento ad personam, distinto do argumento ad hominemsendo este último justificável e lícito em casos específicos, como ensina Chaïm Perelman em seu Tratado da Argumentação.


O fanático busca de forma contínua desqualificar moralmente os seus adversários, e é pertinaz na perseguição deste objetivo difamatório, pois colocar as suas próprias idéias e projetos visionários em discussão é algo que ele não suportaria. Vive, pois, numa agonia interior digna de compaixão, num candente medo de olhar-se no espelho da consciência, a qual procura cauterizar para evitar quaisquer possíveis remorsos, contra os quais se previne com doses suplementares de maldade. A propósito, o fanático faz da calúnia uma espécie de profilaxia contra o arrependimento; por estas e outras razões, a sua tendência não é outra senão a de tornar-se um sociopata oprimido por ódios viscerais.


Quando se mete em questões filosóficas — o que não é tão incomum quanto se possa imaginar — o fanático não consegue dar a menor organicidade às suas idéias, estabelecer um sistema em que os princípios sejam congruentes com os fins. Ao contrário, dada a sua carência de fundamentos sólidos, ele tende a formular conceitos, hipóteses, idéias ou teoremas contraditórios, opinando a favor e contra a mesma tese sob um mesmo aspecto, em momentos distintos ou ao sabor dos seus maus humores. São dessa lavra um Nietzsche, um Rousseau, um Voltaire, um Schopenhauer e até mesmo um Kant, que não suportava ouvir uma só opinião contrária às suas. Com certeza, alguns desses personagens integram a história da filosofia mais pela importância do barulho que as suas idéias fizeram, do que pelo alcance filosófico delas, modesto ou nulo. Outros são verdadeiros talentos que, em algum momento, se perderam.


Estando, pois, o fanático apartado das verdades mais básicas acerca de si mesmo, do mundo à sua volta e, não raro, de Deus, as portas sagradas da filosofia lhe estão vedadas. Sim, pois se por filósofos tomamos aqueles que conseguem estabelecer conteúdos inteligíveis (ou seja, verdades) que marcam uma etapa do pensamento humano; aqueles que, de alguma forma, rebrilham pela precisão com que tornaram claros alguns aspectos do ser até então perdidos nas brumas da obscuridade; é evidente que o fanático não tem como entrar para tal seleto grupo. Existe um impedimento formal em sua alma para alcançar as verdades mais elevadas, que são para nós um vínculo de perfeição moral e espiritual — porque vêm de Deus.


Por estes breves apontamentos se percebe agora que a definição inicial de “fanático” possuía uma imprecisão de fundo: mais do que servir a uma causa ou a uma facção, ele é o sujeito que insanamente serve às suas próprias idéias, com o intuito de enfiá-las goela abaixo do mundo.


Em verdade, no fundo o que o fanático gostaria é de eliminar os seus adversários — mandar quem não o segue para a cidade dos pés juntos. Sem o menor constrangimento.


Há precedentes históricos.


Em tempo: No fabuloso Dictionaire de Théologie Catholique, editado em 25 grossos volumes na década de 30 pela Letouzey et Ané, o verbete fanatisme ensina, entre muitas outras coisas, que o fanático, quando metido em meio às coisas religiosas, tem por hábito sacrificar a Tradição em prol dos seus julgamentos pessoais — temerários e, não raro, sacrílegos. E, devido ao seu orgulho imenso, ele não consegue respeitar nenhum magistério ou hierarquia, embora finja fazê-lo quando conveniente.


Perfeito!


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1- Pelo menos até o ponto em que não se lhe poderá mais dar a desculpa da ignorância, dada a crescente malícia dos seus atos.