quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O mau-caráter e a filosofia



Sidney Silveira


Pode um mau-caráter ser exímio matemático. Pode também notabilizar-se como astrofísico, gramático, geneticista, cirurgião, enxadrista, músico ou lixeiro. Mas ao mau-caráter a filosofia está formalmente vedada, se por filosofia se entende a inquirição das verdades íntimas e últimas da ordem do ser, as quais dão sentido e perspectiva à vida humana — partícipe do ser.


Em resumo, a filosofia pressupõe um tão grande amor à verdade que leva o homem a tomá-la como o fim a ser buscado, o fundamento de todos os valores. Ora, isto exclui ipso facto o mentiroso, o caluniador, o vanglorioso professor cuja atividade consiste em induzir os seus discípulos a venerá-lo como a um guru, o retórico embusteiro, o sofista ávido por vencer um debate a qualquer custo, fazendo uso dos mais deploráveis expedientes e truques. Como adiante veremos, o que se afirma aqui não é pura e simples opinião, mas uma verdade cientificamente demonstrável em clave metafísica.


No mau-caráter — ou seja, no sujeito que habitualmente fere a verdade e o bem para obter vantagens —, a razão especulativa e a razão prática estão dramaticamente afetadas, embora não possam ser suprimidos os primeiros princípios que lhes servem de esteio, pois radicam na forma entis humana como hábitos naturais inatos[1]. E o sintoma primário da doença que afeta as potências superiores da alma do mau-caráter é o seguinte: com os seus reiterados atos movidos pela vanglória, pelo orgulho, pela cupidez, etc., ele priva-se da virtude supracapital no âmbito da razão prática, que é a prudência, definida por Santo Tomás de Aquino como reta razão no agir (recta ratio agibilium).


Ora, perdida a prudência, todas as demais virtudes, inclusive as intelectuais, contaminam-se, visto que estão radicadas na prudência como numa espécie de fonte comum. Sim, pois não pode o imprudente ser habitualmente sábio, nem justo, nem temperante, nem veraz, etc., embora possa ser detentor de alguma ciência particular — da qual faça uso em ocasiões específicas. Não pode, portanto, ser filósofo, porque a inquirição da verdade típica do labor filosófico exclui absolutamente os três principais frutos da imprudência: a inconsideração, a precipitação e a inconstância. Ao contrário, ela exige deliberação profunda, paciência e constância, pois, devido ao dificultoso modo humano de apossar-se da verdade, o filósofo precisa ser alguém cauteloso e perseverante.


Em poucas palavras, o mau-caráter age contra a natureza da razão, e com isso torna-se culpavelmente incapaz de perceber a hierarquia dos valores que devem reger as ações humanas; padece ele, portanto, de um gravíssimo déficit cognitivo que afetará a vontade na escolha dos bens com que depara cotidianamente. Neste contexto, vale aludir a dois luminosos artigos da Suma Teológica nos quais o Aquinate se pergunta se é possível haver virtude moral sem virtude intelectual, e se é possível haver virtude intelectual sem virtude moral[2]. Sua demonstração filosófica para este problema nada desprezível parte de algumas premissas:


Ø a de que, para o homem agir bem, se requer que a razão esteja bem disposta pelas virtudes intelectuais, e que as faculdades apetitivas estejam bem dispostas pelas virtudes morais. Estas são precondições ontológicas para a inteligência e a vontade alcançarem os seus objetos formais próprios: a verdade e o bem, respectivamente;


Ø a de que as faculdades apetitivas não obedecem à razão com total disponibilidade, mas sim com certa resistência, ao ponto em que muitas vezes as paixões ou os hábitos radicados nos apetites obliteram o uso da razão. Daí ser necessário educar o apetite, orientá-lo aos seus fins devidos, o que pressupõe o conhecimento desses fins;


Ø a de que, se a virtude aperfeiçoa a razão especulativa ou prática, é virtude intelectual (ex.: a ciência enquanto hábito mental da verdade); se aperfeiçoa as potências apetitivas, é virtude moral (ex.: a temperança, que é certa continência no fruir alguns prazeres sensitivos).


Consideradas, pois, todas estas coisas, o Aquinate chegará à conclusão de que as virtudes morais podem de fato não estar acompanhadas de algumas virtudes intelectuais — como a da ciência, por exemplo. Mas não pode existir virtude moral sem a efetiva atualização dos primeiros princípios da razão especulativa, que, como se observou acima, é prejudicada em cheio pela perda da prudência (e, aqui, entenda-se por atualização dos princípios a sua simples aplicação aos casos particulares). Assim, é possível haver pessoas boníssimas ignorantes em várias ciências, mas não é possível haver pessoas boas privadas do entendimento atual dos primeiros princípios, que são reitores da ação humana.


Com relação às virtudes intelectuais, elas até podem existir sem algumas virtudes morais, mas não sem a virtude supracapital da prudência — recta ratio agibilium. Ora, a prudência não apenas aconselha bem, mas também julga bem. Ocorre que, de acordo com Santo Tomás, a prudência só pode existir, ou seja, julgar convenientemente, se as paixões que perturbam o juízo forem removidas (cf. Suma Teológica, II-IIª, q. 58, a.5, ad. 3).


Pode-se depreender de tudo o que acima se disse o seguinte: o mau-caráter jamais poderá transformar-se num verdadeiro filósofo, ou seja, no detentor da sabedoria dos princípios e dos fins que regem a ordem do ser. E tal conclusão está totalmente de acordo com a premissa de que a clara visão da verdade pressupõe que as potências superiores da alma humana não estejam acidentalmente impedidas de lograr os fins aos quais tendem.


Sendo assim, o mau-caráter, quando imiscuído nas coisas filosóficas, será na melhor das hipóteses uma espécie de prestidigitador, alguém que pode até enganar a alguns incautos persuadindo-os, a preços nada módicos, de que é um grande filósofo, e de que seus discípulos necessitam tanto da luz de sua excelsa “sabedoria” como de água para sobreviver. De Górgias — que, segundo consta, cobrava caríssimo por seus ensinamentos — até os dias atuais, esse tipinho jactancioso é bastante encontradiço na história da filosofia.


Mas não nos enganemos: ao perder a reta razão no agir, perdeu ele também a reta razão no pensar.

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1- Tanto os princípios da razão especulativa como os princípios da razão prática são, de acordo com Santo Tomás, hábitos naturais inatos. São hábitos enquanto intermediários entre a potência e o ato; são naturais enquanto propriedades radicadas na essência humana; e inatos por não serem adquiridos, ou seja, por já nascerem com o homem.


2-II-IIª, q. 58, art. 4 e 5.