quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Sobre a eternidade do mundo (III) — a ação mantenedora de Deus

“Nada atua na ordem do ser senão pela virtude da ação divina".



Tomás de Aquino


Sidney Silveira


A investigação progressiva do problema da eternidade do mundo, tão discutido por filósofos e teólogos dos séculos XII e XIII, leva necessariamente a outra questão de grande relevância. É o seguinte: a premissa da criação ex nihilo – seja esta no tempo ou desde a eternidade – traz consigo a indagação acerca da conservação das coisas no ser. Assim, como a existência dos entes é intrinsecamente absurda se se retira deles a relação ao Próprio Ser Subsistente, do qual dependem no plano ontológico, impõe-se a pergunta de se podem manter-se no ser apenas a partir de suas potências naturais, sendo, como são, uma contingência metafísica.


O fato de a conservação das coisas por Deus não ser uma consequência lógica da criação, e sim um artigo de fé, não significa que não possa ser investigada, e é o que faz Santo Tomás de Aquino na densa questão V do De Veritate. Em resumo, como as coisas deixam de ser o que são ao desaparecerem as suas causas, o que aconteceria se a causa universal do ser interrompesse seu influxo sobre o conjunto dos efeitos por ela produzido? Manter-se-iam elas no ser mesmo estando desligadas de sua origem? Outra questão: como os agentes naturais só alcançam atuar sobre a matéria e a forma dos entes — mas não sobre o ser, que é um suposto fundamental que os transcende absolutamente —, o que ocorreria se o Próprio Ser parasse de atuar sobre os entes? E mais: atua Ele efetivamente? A resposta do Aquinate é categórica: sem o influxo permanente da Causa das causas, Deus, a criação não subsistiria nem por um instante. Os entes seriam aniquilados, reduzidos a nada. É como se o Criador dissesse subitamente à criação: Ad nihilum reverteris.


Neste ponto convém destacar que, nos entes, a possibilidade de não existir é constatável pela potencialidade da matéria, sendo os únicos entes sem potência para o não-ser os subsistentes imateriais – anjos e almas. Ocorre que a aniquilação não equivale a um processo de corrupção, de degeneração das substâncias individualmente consideradas, de um movimento metafísico específico, pois se trata do passo abismal do ser ao não-ser dado por todo o conjunto dos entes. Ora, um passo de tal magnitude só pode ser dado em razão da infinita virtude da omnipotência divina, porque, assim como os entes não têm o condão de dar o ser (ou seja, criar do nada), também não podem aniquilá-lo, pois as formas são o limite máximo de sua ação, como se disse. O ser é intocável para toda e qualquer a criatura.


Em uma das cinco vias demonstrativas da existência de Deus, Santo Tomás apontara o seguinte: tudo o que tem potência para não ser, em algum momento com certeza não foi. Isto significa que se todos os entes fossem desta condição (contingentes), chegaríamos — retrocedendo na série de causas essencialmente ordenadas — ao nada absoluto, o qual, devido à sua absoluta impotência, nada poderia gerar. Acontece que o absoluto não-ser é absurdo, e isto se evidencia pelo fato simples de haver entes. Noutra formulação, se todos os entes podem não ter sido sempre, é certo no entanto que começaram a ser. Ocorre o seguinte: o que tem potência para o não-ser, justo por esta limitação metafísica não tem potência para dar-se o ser nem para manter-se indefinidamente na ordem do ser.


Há mais. A ação mantenedora de Deus, de acordo com Santo Tomás, é um corolário metafísico destas premissas, daí ele afirmar no fabuloso De Potentia Dei que a operação da natureza provém da virtude divina (ipsa naturae operatio est eniam operatio virtutis divinae). Isto quer dizer que nada atua na ordem do ser senão pela força da ação divina (nec aliquid agit ad esse nisi per virtutem Dei), dado que o ser é o efeito comuníssimo que penetra a intocável intimidade metafísica de todos os entes – e causar tal efeito só compete a Deus (esse est communissimus effectus primus et intimior omnibus aliis effectibus, et ideo soli Deo competit secundum virtutem propriamtalis effectus).


Por tais palavras não se deve entender que Deus atue nas coisas naturais como se elas não tivessem potência alguma, e sim que Ele deu às coisas naturais as forças pelas quais atuam. Noutras palavras, Deus é causa da ação nos entes naturais na medida em que dá e conserva no ser as suas potências (Deus causa actionis in quantum causat et conservat virtutem naturalem in esse), afirma o mestre noutra parte do De Potentia Dei. Isto é razoavelmente simples de explicar: todo agente particular é imediato com relação ao seu efeito próximo, mas, quando se considera a virtude pela qual uma ação é levada a cabo, a causa mais elevada é em certo sentido mais imediata em relação ao efeito que a causa inferior, pois a virtude inferior não se une ao efeito senão pela virtude da causa superior (virtus inferior non coniungitur effectiu nisi per virtutem superiores, cfme. De Potentia Dei q. 3). Assim, a virtude da causa universal primeira atua mais intimamente sobre os efeitos do que todas as virtudes das causas segundas. Isto considerado, conclui-se que Deus é causa de toda ação da natureza na medida em que dá a esta as virtudes para ser, atuar e conservar-se no ser. Retirada a Sua radical ação mantenedora, a natureza nada será, pois lhe faltará o vínculo metafísico que faz com que seja, na conhecida definição de Tomás, a ratio de certa arte divina, intrínseca aos entes, que os faz moverem-se naturalmente aos seus fins”.


Encerremos com uma passagem luminosa do De Potentia:


“Da mesma maneira como, ao cessar a ação da causa eficiente que atua mediante movimento, cessa no mesmo instante a gênese da coisa engendrada, assim também ao cessar a ação do agente incorpóreo [que é Deus] cessa o ser das coisas criadas por Ele”1.


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1- Sicut igitur cessante actione causae efficientis, quae agit per motum, in ipso instant cessat fieri rerum generatarum, ita cessante actione agentis incorporei, cessat ipsum esse rerum ab eo creatarum”. Tomás de Aquino, De Potentia Dei, q.5, resp.