quinta-feira, 13 de maio de 2010

Castidade e celibato (IV): a moderação das paixões


Sidney Silveira
Nesta série de textos, entre outros pontos já mostramos que:

> (Artigo I) Existe uma distinção entre celibato e castidade, sendo o primeiro uma modalidade especial da segunda;
> (Artigo II) Embora não seja um dogma — e, portanto, possa ser disciplinarmente mudado, se a Igreja julgar prudente fazê-lo —, o celibato sacerdotal é uma medida que se fundamenta em doutrina expressa na Sagrada Escritura e no Magistério [Os seus adversários, portanto, devem meditar sobre isto, antes de sair por aí dizendo que ele nada tem a ver com a doutrina];
> (Artigo III) Tanto o celibato como a castidade devem ser contemplados à luz da perfeição cristã, que é permeada por uma dupla dimensão: as vidas natural (alma) e sobrenatural (graça).

Agora, parece-me adequado apontar um instrumento fundamental para que a castidade não-celibatária (no caso dos leigos casados) e a castidade celibatária (no caso dos padres, monges, freiras e leigos não-casados fiéis à doutrina) não se esfumem; e para que as virtudes, mantidas com o auxílio da graça, não se transformem nos piores vícios. Esse instrumento é o combate às paixões.

Em outro momento, deixei consignada no blog a definição de “paixão” que Santo Tomás colhe de São João Damasceno — dando-lhe essa tão benéfica precisão escolástica que louvamos: paixão é o movimento do apetite sensitivo pela imaginação de um bem ou de um mal.

Movimento, aqui, toma-se em seu radical sentido metafísico: como o trânsito da potência ao ato; apetite, como a tendência natural de uma dada potência; sensitivo, com referência tanto aos cinco sentidos externos (visão, tato, olfato, audição e paladar), como aos quatro sentidos internos (senso comum, memória, imaginação e cogitativa); imaginação, como um desses sentidos internos (o que recebe os dados unificados pelo sensus communis e lhes imprime uma imagem); e bem e mal não na perspectiva ontológica, mas como relações* na alma do sujeito. Neste contexto, o amor (movimento do apetite natural do bem) é a mais radical das paixões. Um exemplo? A falta de um bem amado que subitamente se perdeu gera tristeza (uma das paixões da alma). Assim, a tristeza é a imagem da perda do bem que perdura na alma e a fustiga. Tal paixão causa uma dor psicológica maior ou menor na exata medida do tamanho da perda.

Definido, pois, o conceito de paixão, e decodificados todos os seus termos, impõe-se dizer que as paixões, em si, não são boas nem más — e podem transformar-se ou no veículo das mais dramáticas quedas e pecados, ou no instrumento das mais heróicas virtudes (inclusive a da castidade, de que tratamos).

É exatamente neste ponto que o dogma do pecado original lança luzes sobre a doutrina católica e nos aponta para a evidência mais acachapante — que observamos em nós mesmos e em todas as demais pessoas: o influxo das paixões na vida de todos os homens. Ora, diz a Igreja que, em decorrência do pecado original, a natureza humana ficou tão debilitada e maltratada que a parte superior da alma (leia-se: inteligência e vontade) sentiu a revolta da inferior (as potências sensitivas), e, a partir de então, as paixões, que antes serviam à operação ótima da alma (conhecer a verdade e querer o bem), se transformaram num cruel aguilhão. Daí surge a necessidade de combatê-las, moderá-las, moldá-las para que nos levem a fazer o bem.

Antes de prosseguir, façamos a distinção entre homem carnal e homem espiritual. O carnal é aquele que vive na superfície das suas pequenas misérias e desejos, dando vazão a todas as paixões e inclinações e dissipando o espírito nas coisas exteriores mais supérfluas — nas quais acaba por escravizar-se; o espiritual, olhando para essas mesmas misérias, abre os olhos da alma para combatê-las, tendo em vista não apenas libertar-se das dores psicológicas que o acossam, mas, principalmente, agradar a Deus. A vida deste último é, portanto, muito mais rica em matizes que a do homem carnal tendente a orbitar, mecanicamente, em torno de uma imagem unitária (a da paixão dominante), e das que com ela se relacionam. O homem espiritual, por sua vez, expande a vida interior de forma extraordinária, ao criar um dique para frear as paixões desgovernadas. Observe-se que as paixões existem tanto para um como para outro, dada a nossa humana condição corporal-animal; mas que diferença entre os dois!

Neste contexto, para que passemos do homem velho (carnal) ao novo (espiritual), a Escritura Sagrada, o Magistério da Igreja e os sacramentos desta fornecem-nos o fim, os meios e a doutrina perfeita. E a doutrina, a propósito, nos diz que a inclinação ao mal proveniente do pecado original faz as paixões ofuscarem a luz da razão; afagarem os mais baixos instintos; fomentarem o amor-próprio em grau crescente; seduzirem e escravizarem a vontade. Pelo combate a elas, com a ajuda da graça vamos aos poucos tornando-nos capazes de fazer a razão rebrilhar com intensidade cada vez maior (liberta das imagens obsedantes); os instintos ordenarem-se ao conjunto de bens fundamentais captados pela sindérese; o amor-próprio mitigar-se e dar espaço ao verdadeiro amor cristão, agápico; e a vontade libertar-se para escolher bens efetivos e verdadeiros, sem jamais sobrepor os menores aos mais excelentes.

Os exemplos dos Santos — vitoriosos nesta imensa luta contra as paixões — são ilustrativos para nós. São um modelo. Daí a importância de essa guerra ter como insumo a experiência e a doutrina dos Santos. Aqui, por uma mera questão de espaço, sugiro apenas cinco leituras — facilmente encontráveis em boas edições: Filotéia (obra de gigante!) e Tratado do Amor de Deus, de São Francisco de Sales; o Castelo Interior, de Santa Teresa de Ávila; e Subida do Monte Carmelo, de São João da Cruz.

Alimentados por esse leite espiritual nos revigoramos para o combate às paixões — fundamental para quem pretende adiantar-se na perfeição que Nosso Senhor quer que alcancemos, para a qual a castidade vivida na graça é um sublime instrumento.

(continua)
* Relação é um termo que aqui expressa uma das 10 categorias de Aristóteles.
Em tempo 1: Sempre que se expõe a doutrina da Igreja sem mesclá-la com elementos espúrios ou idéias bizarras (como por exemplo as teorias de René Girard, uma tola diabolice), tudo é visto sob uma nova luz. Ocorre-me agora o exemplo do filósofo boca-suja (texto sobre o qual ainda hoje recebo emails; a muitos dos quais não tenho tempo de agradecer). Tal exemplo se encaixa perfeitamente na presente exposição sobre a castidade, no seguinte sentido: premido pelas paixões que não consegue refrear, o arquetípico boca-suja acabará por limitar o seu talento filosófico — limitá-lo até o ponto de transformar-se num intelectual estéril, pois, como diz Santo Tomás, a vida intelectual, se não se alimenta de uma verdadeira vida do espírito (com todas as suas implicações), acaba por perder-se. Tristemente.