sexta-feira, 23 de abril de 2010

Castidade e Celibato (II): fundamentalmente uma questão doutrinal


Sidney Silveira
No último texto se disse que o celibato sacerdotal não é um dogma de fé, mas uma questão disciplinar que segue um conselho evangélico. Embora isto seja verdade, há um aspecto muitíssimo importante a ser esclarecido: o fato de ser uma medida disciplinar não implica dizer — de forma alguma! — que não se trate de uma questão doutrinal. Primeiramente, pelo fato de que a doutrina da Igreja não se faz apenas de dogmas, mas também dos preceitos e conselhos expressos na Sagrada Escritura, do Magistério e da Tradição. Em segundo lugar, porque toda vez que o Magistério se manifesta de forma solene sobre uma questão qualquer (como no caso do celibato), o faz apoiando-se numa verdade de fé ou numa verdade que, embora não seja de fé, é importantíssima para custodiar o precioso depósito da fé. No caso do celibato, a doutrina é clara: a superioridade intrínseca da castidade celibatária em relação ao estado matrimonial. Ensina Nosso Senhor a respeito disto, logo após os discípulos lhe dizerem que, sendo tal a condição do homem a respeito da mulher (a saber: de que quem rejeita a sua mulher para desposar outra comete adultério), é melhor não se casar (...cum uxore non expedit nubere, Vulgata, Mt. XIX, 11):

“Há de fato eunucos que o são desde o ventre de suas mães, há eunucos tornados tais pelas mãos dos homens e há eunucos que a si mesmos se fizeram eunucos pelo Reino dos Céus. Quem puder compreender, compreenda”. (Mt. XIX, 11).

E São Paulo:
“Quisera ver-vos livres de toda preocupação. O solteiro cuida das coisas que são do Senhor, de como agradar ao Senhor; o casado preocupa-se com as coisas do mundo para agradar à sua esposa. (...). Digo isto para o vosso proveito; não para vos estender um laço, mas para ensinar o que melhor convém e o que vos poderá unir ao Senhor SEM PARTILHA. (...). Em suma, quem casa a sua filha faz bem, e quem não a casa faz ainda melhor (Cor. I, 7, 32-38).

A partir disto, convém frisar o seguinte: todas as decisões disciplinares da Igreja têm o seu fundamento, a sua coluna, a sua referência primeva na verdade da fé, pois se não fosse assim o Magistério da Igreja seria a expressão de um governo despótico, e não um ato benéfico de ensino em prol da salvação das almas. No caso de que se trata, não há como ser mais claro, tanto pela palavra de Cristo como pela de São Paulo: o celibato é algo superior por tratar-se de um conselho. Ora, como diz São Francisco de Sales, notável Doutor da Igreja, num trecho de seu maravilhoso Tratado do Amor de Deus, os preceitos são obrigatórios, mas os conselhos são de ordem superior porque servem àqueles que querem seguir ao Senhor mais de perto, de forma mais perfeita, e a Igreja, tendo fins tão elevados e meta-históricos — ou seja: que estão acima de quaisquer modismos dos séculos —, não pode desprezar os conselhos evangélicos, pois isto significaria que renunciou à excelência cristã. Foi esta, a propósito, a razão da crítica que se fez aqui a um tomista contemporâneo que, usando de textos de Santo Tomás, deturpa totalmente a noção de desprezo do mundo (contemptus mundi).

Fique, pois, muito claro que o celibato, embora não seja um dogma, é uma questão doutrinal claramente expressa na Sagrada Escritura e belamente fundamentada pelo Magistério. Daí dizer o Concílio de Trento (cuja leitura tantos problemas estomacais causa a católicos liberais):

“Se alguém disser que o estado conjugal se deve antepor ao estado de virgindade ou celibato, e que não é melhor nem mais beato permanecer no estado de virgindade e celibato do que contrair matrimônio, seja anátema. (Cân. 10).

Reiteremos, pois, em vista disto — uma vez mais: o celibato sacerdotal adotado pela Igreja, de fato, não é um dogma, mas é, em sua raiz, uma medida doutrinal, a menos que per absurdum concedamos que o ensinamento de Cristo não é doutrina...

E há mais: o celibato sempre foi praticado na Igreja. O fato de ter sido apenas afirmado solenemente como algo necessário para os padres da Igreja latina ocidental no Concílio de Elvira, no século IV, não significa que já não fosse largamente praticado, embora houvesse padres casados. Analogamente, o fato de o Dogma da Imaculada Conceição só ter sido proclamado no Século XIX por Pio IX não significa que, antes disto, Maria tivesse sido maculada pela mancha do pecado original.

(continua)

Em tempo: Participei nesta semana de um programa de TV apresentado por um conhecido cantor pop brasileiro — cuja íntegra está neste site. Compareci após muito pensar se de fato não seria absolutamente contraproducente, dado o perfil da emissora e do programa (voltados para adolescentes de um mundo que adolesceu), e por outras razões que certamente ficarão evidentíssimas para os leitores do blog que assistirem ao vídeo. Mas o fato é que acabei por ir. E, entre as pessoas convidadas, havia um padre progressista que, como eu, colocou-se contra o fim do celibato. Mas tal era a ordem de divergências entre nós sobre as causas dos atuais escândalos, que não havia como expô-las sem que com isto mudássemos totalmente o assunto do programa, que partia da premissa (pressuposta desde o começo) de que o celibato é causa dos casos de pedofilia. Por isso, a certa hora calei-me, pois, bem ou mal, estávamos ali para defender a Igreja dos ataques externos, muitos deles chulos, mais do que para discutir os seus gravíssimos problemas internos que há 50 anos a mantém num C.T.I.; por isso calei-me com tristeza quando o sacerdote falou que a Igreja precisa modernizar-se, atualizar-se — como se não bastasse tudo o que já fez neste sentido —, receitando justamente os remédios que foram o veneno que a descatolicizaram por dentro... Isto me aborrece e escandaliza muito mais do que as opiniões dos não-católicos que adoram xingar a Igreja, que blasfemam, ironizam, etc., mas muitas vezes são mais facilmente convertidos à fé do que aqueles que a deturpam, consciente ou inconscientemente. O fato é que a presente série de textos serve para esclarecer o assunto; ali no programa com perfil teen, isto era impossível, agora sei. Por isso eu não repetiria a dose, pois aprendi que certas discussões se tornam impossíveis sem a ambiência adequada. O meu amigo Nougué teve razão ao aconselhar-me: pense bem se vale a pena ir... Mas se valeu ou não, entrego nas mãos da Virgem, de quem sou devoto, pois pelo menos a intenção era boa. Mas não consegui dizer ali, entre várias outras coisas, que se o sacerdote não tem o hábito da virtude da castidade (e aqui vale lembrar que, como diz Santo Tomás, o pecado habitual é, em certo sentido, pior que o atual), na prática está renunciado à graça que, pelo sacramento da Ordem, Deus subministra àqueles que O querem seguir de perto, exercendo ofício tão sublime..