segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Relações Igreja-Estado (VIII): os valores orientadores da "Pólis"

A Cidade Católica rodeada por demônios


Sidney Silveira
A Pólis perfeita é absolutamente irrealizável, em qualquer século. Sempre haverá algum grau de desordem circundante ao qual os indivíduos não poderão escapar. Seja na Roma Antiga, erguida sobre a noção de “virtude”, ou na Roma decadente e prostituída de Calígula e de Nero; seja na Grécia do período protofilosófico de Tales ou na do tempo de Péricles; seja na Idade Média cristã ou no Renascimento antropocentrista; ou, por fim, nas sociedades ultraliberais contemporâneas, nas quais a noção de bem comum esfumou-se, tornando a virtù política algo formalmente irrealizável. A propósito, a perda da idéia de bem comum político, decorrente do avanço do liberalismo mundo afora, é uma das tragédias das sociedades contemporâneas — e, para a percepção desta triste verdade, indico veementemente a leitura do livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, do filósofo Jorge Martínez Barrera.

Em todas as sociedades e em todos os tempos, haverá sempre uma tensão entre a verdade e o erro, a ordem e a desordem, o bem e o mal. É certo que, em alguns períodos históricos, em contextos culturais específicos, serão melhores as precondições para a vida contemplativa, a bios theoretikos por cujo exercício segundo Aristóteles o homem seria feliz no seio da Pólis, como contemplador da verdade. Mas, mesmo nas ocasiões episódicas em que tal horizonte favorável se realiza, para muitas pessoas um injusto infortúnio político é o destino inescapável. Os exemplos são incontáveis, ao longo dos séculos. Não há Cidade perfeita neste vale de lágrimas.

Existe uma íntima imbricação entre o caráter de uma sociedade e o da maioria dos indivíduos que a compõem. Este insight de Platão n’A República é uma conquista definitiva para a história da filosofia política, embora infelizmente tenha sido tão mal-interpretado por intelectuais que leram a obra do grande pensador grego de esguelha — à luz das suas próprias premissas, como por exemplo o liberal Karl Popper, no péssimo A Sociedade Aberta e seus Inimigos, que tanta gente influenciou durante décadas.

Em resumo, a notável visão política platônica (malgrado os seus erros específicos, que não cabe enumerar neste breve texto) parte da premissa de que a autoridade espiritual — noética — não pode estar desvinculada do poder político. Sim, pois para uma sociedade ser bem ordenada, e lograr todos os seus fins, é conveniente que o exercício do poder esteja nas mãos dos mais sábios, e não dos ignorantes; dos mais dignos, e não dos mais corrompidos. Aqui, não há lugar para o político profissional, tão característico da democracia liberal considerada hoje pela média dos homens como uma espécie de valor “supremo”, no qual não se pode tocar.

Parece-me um grande equívoco a idéia de que esta concepção política, na opinião do próprio Platão, seria algo impossível de alcançar. Como bem afirma Eric Voegelin no volume II de seu Ordem e História, dedicado a Platão e Aristóteles, nada mais errôneo do que considerar Platão um utópico, pois a sua Politeia não é propriamente um “Estado Ideal” (como alguns comentadores modernos nos fizeram crer), mas sobretudo o apelo de ordenação política dirigido aos atenienses com a autoridade espiritual do filósofo, nas palavras do escritor alemão. A irrealizabilidade fática deste projeto, por motivos que escaparam totalmente a Platão, é outro assunto. Um desses motivos foi muito bem identificado por Santo Tomás de Aquino, numa passagem do seu Comentário à Política de Aristóteles, em que cita Platão: o frontal ataque à família, com a tese de que os filhos devem ser retirados das mães e entregues ao Estado, para ser convenientemente formados.

Apenas com o advento do Cristianismo, sob a autoridade do Magistério da Igreja, a Politeia platônica encontrará ocasião para realizar-se na prática — embora sempre de forma imperfeita e balizada por outros princípios, muito mais sólidos. Mas esta deficiência não será problema algum para os cristãos, na medida em que a perfeição absoluta, de acordo com a doutrina católica tão lindamente expressa por Santo Agostinho no esplêndido De Civitate Dei, só se alcançará na Pátria Celeste onde tudo se ordena perfeitamente ao fim último, e não existe a mancha do pecado original a impregnar a alma humana com a fomes peccati.

Com Bonifácio VIII, a consagração, pelo Magistério da Igreja, da subordinação do poder material ao espiritual é a colocação em prática daquela premissa platônica — que no Cristianismo é referendada pela Revelação e, portanto, se dá sob o peso da autoridade divina. Sendo assim, o que diz Eric Voegelin, no livro citado, a respeito de Platão e Aristóteles (a saber: que a situação dos indivíduos na Cidade deve ser a resposta a uma teofania ou “evento teofânico”), serve muito mais para a Igreja: ou as sociedades são regidas pela lei eterna, que impede o movimento inercial das almas ao abismo — lei divina da qual a Igreja é a fiel depositária —, ou se destruirão na barafunda de interesses conflitantes entre si e, também, com o bem comum político. A diferença em relação ao mundo grego é que a teofania cristã não se baseia em mitos, mas na própria Encarnação do Verbo unido hipostaticamente à humanidade de Cristo.

É neste sentido que o grande Leão XIII, numa de suas mais importantes Encíclicas (Immortale Dei, cujo texto causa urticária nos católicos liberais), afirma: “Houve um tempo em que a filosofia do Evangelho governava as Nações” (...). Sabia Leão XIII que a sombra benemerente da lei evangélica, de fardo fácil de carregar para quem se abre ao influxo da Graça, é a única capaz de minimizar os desgovernos, no plano político, decorrentes da nossa natureza caída. Sabia Leão XIII que, com relação à idéia de que o caráter das sociedades é o espelho dos valores nelas predominantes, Platão estava certíssimo. Daí a necessidade de que os valores da Verdade revelada sejam não apenas os orientadores da Pólis, mas sejam preservados de quaisquer erros, para o bem de todos.

Embora a Cité Catholique defendida por São Pio X na Carta sobre o Sillon não seja perfeita, dada a nossa condição de homo viator, de pecadores, é na prática a única que pode servir de caminho para a Jerusalém Celeste preparada por Deus para os eleitos, ainda que esteja ela rodeada por demônios, como na imagem que ilustra o presente artigo.