segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A autoridade doutrinal do Doutor Comum (I)


Santos Dominicanos, de Fra Angelico


Sidney Silveira
Todos os que estudamos Santo Tomás de Aquino sabemos muito bem que, para ele, o chamado argumento de autoridade não valia de nada, ou seja, o sestro — infelizmente tão comum nos dias atuais — de aduzir como prova “filosófica” de algo o seguinte: “Quem disse foi fulano ou sicrano, uma autoridade no assunto”. Em resumo, a única autoridade válida para o Aquinate, em sentido prático, é a da verdade, seja a Verdade revelada na Sacra Pagina, seja qualquer outra de que o nosso intelecto se aposse.

No entanto, é certíssimo que a autoridade doutrinal desse excelso Doutor da Igreja é inconteste, e se Mestre Tomás disse (magister dixit), o mínimo que devemos fazer é suspender o juízo antes mesmo de sequer pensar em discordar; e somente depois de longa meditação e estudo, arriscarmos o nosso parecer. Afinal, trata-se do maior teólogo da Igreja acolhido pelo Magistério infalível de forma solene. E, como veremos, isto não é pouco.

Falar da autoridade de um Doutor da Igreja nos remete a uma distinção importante: entre autoridade científica e autoridade dogmática. A autoridade científica depende do valor intrínseco do saber e das obras de um homem; a autoridade dogmática depende da conformidade de tais obras com a Divina Revelação e de sua aprovação pelo Magistério da Igreja, mestra da Verdade revelada. O próprio Aquinate nos dá a fórmula: em doutrina católica, mesmo os grandes Doutores recebem da Igreja o peso de sua autoridade, e por esta razão devemos ater-nos mais à autoridade da Igreja do que à de Agostinho, Jerônimo ou a de quaisquer outros Doutores (ipsa doctrina catholicorum Doctorum ab Ecclesia auctoritatem habet; unde magis standum est auctoritati Ecclesiæ quam auctoritati vel Augustini vel Hieronymi vel cuiuscumque Doctoris)*.

Ocorre que a autoridade científica (teológica) de Santo Tomás é simplesmente máxima na Igreja, pois ele é o Doctor Communis e foi referendado por vários Papas, Concílios e teólogos de saber notório ao longo de sete séculos. E a sua autoridade dogmática pode ser medida pelo fato de a própria Igreja ter adotado — em tantos e tantos casos — as fórmulas de Santo Tomás para expressar uma série de dogmas. A partir de então chegou-se a uma espécie de cume magisterial. Para dimensionar isto aos leitores do blog, farei um resumo que segue de perto a introdução do volume I da Suma Teológica publicada pela Biblioteca de Autores Cristianos – BAC em 1947, sob a coordenação de alguns dos mais geniais dominicamos que houve em Salamanca, na Espanha. Tal resumo será muito útil, por dar a exata medida da importância desse gigante que foi Tomás de Aquino.

Comecemos com o que nos conta o Chartularium universitatis parisiensis acerca do reconhecimento que o Aquinate teve ainda em vida. Quando Tomás contava apenas trinta anos, o Papa Alexandre IV chamou-o de tesouro da ciência, pela graça de Deus (vir morum honestate conspicuus ac thesaurum litteralis scientiæ per Dei gratiam assecutus). O adversário Siger de Brabant o equiparou a Santo Alberto Magno, que era tido então como o maior teólogo da Igreja (præcipui viri in Philosophia Albertus et Thomas)**; Roger Bacon chama a Tomás e a Alberto de modeni gloriosi.

A Faculdade de Filosofia de Paris, ao ter notícia da morte de Tomás, escreveu um panegírico em que chamava o Aquinate de luzeiro da manhã, luz e esplendor do mundo, sol do universo (stellam matutinam, præminentem in mundo, iubar et lucem sæculi), com cujo desaparecimento sofreu a Igreja uma perda incomensurável. O antigo mestre Alberto Magno escreve que Tomás foi a flor e honra do mundo (flos et decus mundi) e o homem mais sábio depois do seu tempo até o fim dos séculos, sem temor de ser superado por ninguém.

E o mesmo fazem os seus discípulos. De acordo com Pedro Calo em sua obra Fontes vitae S. Thomae Aquinatis, Remígio Girolami chama Tomás de “luz dos nossos olhos e coroa de nossa cabeça”; Bombolônio de Bolonha aquilata-o como Doctor venerabilis, e o mesmo faz Roberto dei Primadizzi, que considera frei Tomás como Doctor egregius. Guilhermo de Tocco, discípulo e talvez o primeiro biógrafo do Santo, o exalta como Doutor admirável, órgão da divina sabedoria (Doctor mirabilis; erat enim divinæ sapientiæ organum).

Este é apenas o reflexo do primeiro momento após a morte de Santo Tomás. Como veremos nos textos seguintes, a obra do Aquinate passou por uma prova de fogo durante os primeiros 50 anos posteriores ao seu falecimento, atacada por inimigos poderosos. E saiu incólume, para depois ser acolhida pela Igreja como sua.

(continua)


* Suma Teológica, II-II, q. 10, a. 12., resp.
** Pierre Mandonnet, no livro Siger de Brabant.