sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Um só anjo em cada espécie


Sidney Silveira
É impossível um só homem atualizar todas as potências da espécie, nesta vida tão efêmera, tão cheia de vicissitudes — permeada de condicionamentos de vários tipos. É bom, pois, para a espécie humana que haja muitos indivíduos que atualizem as inúmeras possibilidades inscritas em nossa forma entis. Sicrano é grande teólogo; beltrano, um esportista; fulano, grande compositor e, ademais, filósofo; aquele outro, um grande mestre de xadrez; etc. Ao longo dos tempos, essa maravilhosa miríade de talentos, de atos e de realizações das pessoas vai compondo um panorama de tudo aquilo de que o homem é capaz (e aqui, para o que importa, refiro-me apenas aos homens notáveis, àqueles que deixaram, com suas vidas e suas obras, uma marca indelével de algo grandioso, exemplar). Olhamos para este variadíssimo cenário e temos um espelho de virtudes e de talentos grandemente inspirador. E é bom que assim o seja.

Fixemos muito bem isto: é impossível a um só indivíduo humano atualizar todas as potências da espécie, mas apenas um número limitado delas. Por um lado, isto é algo estupendo, pois sabemos que, por mais que aprendamos, por mais que cresçamos em virtude e em bem, sempre haverá um caminho a percorrer; e se por desventura erramos, se caímos, há a possibilidade de nos levantarmos, porque outros já o fizeram — e nos servem de exemplo. Sempre há e haverá novas coisas para entender, novos bens lícitos para querer. Por outro lado, tudo isso nos aponta para a necessidade de ser humildes, pois temos a notícia da nossa limitação, da nossa contingência e, em suma, da nossa absoluta pequenez. Bem dizia Santa Teresa D’Ávila que humildade é caminhar na verdade, razão pela qual é na clara visão da nossa miséria que nos tornarmos humildes e, por isso mesmo, capazes de grandiosas realizações, pois a nossa grandeza começa no reconhecimento desse quase nada que somos... O sujeito humilde é alguém que tem o senso de proporções preservado, ao contrário do orgulhoso, cuja cegueira da mente atrapalha ou impossibilita a visão da realidade.

Uma das causas mais palpáveis dessa nossa limitação essencial está no fato de que temos composição de matéria. Ou seja: a matéria nos circunscreve espacialmente; e, aderida à forma substancial que é a alma humana, é um co-princípio inferior que move uma série de potências — sendo sempre o corpo o instrumento para todas as possibilidades entitativas do composto humano, inclusive entender e querer, na medida em que: a) conhecemos as coisas por abstração de suas qüididades materiais (ato para o qual várias potências sensitivas são postas em marcha) b) queremos as coisas não de forma etérea, pois há sobre o nosso querer o influxo de várias predisposições corporais, de paixões e de tendências derivadas de aspectos físicos que, muitas vezes, configuram o temperamento, etc.

Em síntese, a espécie humana, para preservar-se e para manifestar o esplendor de sua natureza criada à imagem e à semelhança de Deus, precisa da multiplicidade de indivíduos; isto é bom para ela; ademais, Deus quis criá-la com esta característica. Portanto, se a nossa forma atualiza a matéria dando-lhe a peculiar organicidade que permite manifestar todas as nossas possibilidades espirituais e intelectuais, na verdade o faz, em cada um, de forma limitada, mas de maneira perfeita no conjunto da espécie.

Mas e se não tivéssemos corpo? A espécie humana, neste caso, precisaria de muitos indivíduos para atualizar todas as suas possibilidades espirituais e intelectuais? Precisaria de muitos para perpetuar-se? Precisaria de muitos para alcançar o seu maximum? A resposta de Santo Tomás é: não! E este é justamente o caso dos anjos, substâncias separadas da matéria.

Diz o Aquinate:

“Nenhuma forma, a não ser a forma corpórea, é recebida na matéria ao modo de quantidade. (...) Logo, é impossível que dois anjos sejam da mesma espécie”.*

No sed contra dessa mesma questão do seu Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, já asseverara Santo Tomás que a multiplicação dos indivíduos humanos concorre para perpetuar a espécie (o que não é o caso dos anjos), a qual não pode subsistir em um só homem. Ademais, o anjo não conhece por abstração, mas por intuição direta das essências, ou seja: sem que seja necessário usar o corpo (e todas as potências que lhe são próprias) para entender; portanto, a sua percepção espiritual dos bens que deseja é perfeita, pois nela não há mescla de paixões ou tendências oriundas de precondições corporais. E muito menos há o tempo, na medida em que o anjo — como o demonstra a metafísica aplicada à Angelologia — está fora do tempo, dado que a sua existência se atualiza no evo, um meio termo entre o tempo e a eternidade (fato sobre o qual voltaremos noutro texto). Sendo assim, não há na constituição de cada anjo nenhuma coisa que impeça a atualização de todas as potências de sua espécie. Logo, só pode haver um anjo em cada espécie. Daí dizer Octavio Derisi, citado na extraordinária edição de Sobre os Anjos (da Sétimo Selo), que o anjo Gabriel é a própria gabrielidade, ou seja: é único em sua espécie. E assim com os demais anjos.... E nenhum homem, por sua vez, pode dizer que é a humanidade.


* Santo Tomás, II, Sent. d. 3, art.4, resp.