quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Sobre filosofia e método

Sidney Silveira
Divergências entre homens dedicados à especulação filosófica só se podem resolver numa espécie de disputatio, ou seja: com a clara definição das premissas de parte a parte e a conseqüente dissecção dos argumentos por um procedimento dialético que pese todas as objeções*. E, de fato, não há meio mais eficaz de alcançar a verdade, pois não temos — como devaneava Husserl — a intuição direta das essências. Precisamos compor e dividir raciocínios para, analiticamente, tomar posse do conceito pelo qual adequamos a nossa inteligência às coisas inteligidas.

A disputatio foi o que de mais elevado se produziu em termos de método dialético, em todos os tempos. Portanto, qualquer discussão, se se quiser séria, precisa ter algo da disputa escolástica, e não por uma espécie de arqueologismo sem sentido, mas porque, em qualquer ordem de coisas, o mais e o menos se medem em relação ao grau máximo — e o máximo a que se chegou, em termos de exposição analítica, foi a disputatio. Por esta razão, mesmo um filósofo contemporâneo deve tê-la no horizonte, como uma espécie de modelo. Não se trata, é claro, de uma necessidade de escrever em forma de disputa, mas apenas de tê-la como elevado referencial para a inquirição da verdade.

A busca por esse modelo de excelência para o munus philosoficus se impõe com absoluta evidência quando consideramos que — como dizia Edith Stein em seu denso Ser Finito e Ser Eternoé tarefa da filosofia esclarecer os fundamentos de todas as ciências. A propósito, sou insuspeito para fazer qualquer elogio a esta peculiar metafísica, pois penso que a sua tentativa de pôr lado a lado Santo Tomás e Husserl, de quem fora discípula no início de sua trajetória intelectual, acabou por gerar grandíssimos males para a teologia católica posterior. Mas o que importa, aqui, é que esta sentença de Edith, compartilhada por pensadores de escol, é acertadíssima: é tarefa da filosofia esclarecer os fundamentos de todas as ciências. E isto porque, toda vez que um cientista de uma área específica do saber investiga o fundamento de sua ciência, atua como filósofo.

Certamente, a filosofia não se resume a esta nobilíssima tarefa de dotar todas as ciências de uma ratio suficiente, mas é seu papel, sobretudo, buscar a verdade sobre todos os inteligíveis, penetrar o âmago das coisas tanto quanto seja possível, realizar o que alguns teólogos chamaram de reductio ad mysterium, ou seja: nessa busca, levar a inteligência até o ponto em que não reste outra coisa senão o raio de trevas luminosas da incognoscível Causa Primeira que é a razão da cognoscibilidade de todas as demais causas e coisas, como lindamente dizia o Pseudo Dionísio. Um filósofo que se contente com um esclarecimento provisório sobre as causas últimas do Ser, ou então nem sequer as coloque em pauta, é uma espécie de prevaricador — e cedo ou tarde acabará enredado por sua própria inapetência pela verdade.

A propósito, não há outro caminho para o espírito humano: ou se ordena intencionalmente ao fim último, que é o Próprio Ser Subsistente (e, neste contexto, a filosofia cumpre o papel específico de dar sentido a essa ordenação intencional), ou dele se afasta e se dissipa no absurdo, no non sense, em fatuidades, em más filosofias.

Nesta tensão, nada como valer-se de um método seguro para iniciar a caminhada.

* Isto não quer dizer, em absoluto, que valha qualquer procedimento na discussão com pessoas que não buscam a verdade, como se demonstrou na breve “Questão Disputada sobre o uso de palavras torpes por parte do filósofo”.