terça-feira, 1 de setembro de 2009

Nosso papel e divisão de águas

Carlos Nougué
Qual a posição e o papel do leigo no Magistério da Igreja? Para sabê-lo, é preciso verificar como o próprio magistério infalível o estruturou, segundo, naturalmente, o modo como Cristo mesmo fundou sua Igreja.

Temos, assim, a seguinte divisão do Magistério geral da Igreja (cf. Padre Álvaro Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire, p. 54):

I) Órgãos autênticos:
1)
O Papa, como suprema autoridade apostólica;
2) Os bispos, em comunhão com o Papa, e enquanto mestres ex officio da
verdade evangélica.
II) Órgãos subsidiários:
1) Papais: congregações romanas, comissões pontifícias, etc.;
2) Episcopais: padres párocos, comissões diocesanas, etc.
III) É a seguinte a divisão desses órgãos em ordem aos atos:
III1) Dos órgãos autênticos:
1a) O Papa sozinho;
1b) O Papa e os bispos em concílio;
2a) Os bispos dispersos em comunhão com o Papa;
2b) Os bispos sozinhos.
III2) Dos órgãos subsidiários:
1a) Teólogos, especialistas em ciências eclesiásticas;
1b) Catequistas;
2a) Chefes de família;
2b) Simples fiéis, sobretudo enquanto especialistas em diversas ciências.

Fica pois patente a subordinação e ordenação dos órgãos subsidiários e de seus atos aos órgãos autênticos e seus atos, e dos chefes de família e simples fiéis ao conjunto do corpo eclesiástico. Isso pelo ângulo da estrutura mesma da Igreja.

Do ângulo da autoridade doutrinal, vejamos sua hierarquização com respeito às ciências das coisas divinas:

a) Na ciência revelada, sendo Mestre principal ou simpliciter Cristo mesmo, serão mestres auxiliares o Papa e os bispos; enquanto os diáconos e simples sacerdotes serão meros repetidores. Só aos primeiros Cristo “comunica uma luz especial pela qual participam de sua ciência divina, tornando-os capazes de interpretar e desenvolver a doutrina revelada com garantias de infalibilidade em certos casos” (P. Calderón, ibid., p. 90) — ou seja, dadas as quatro condições vaticanas, e desde que, em vez de impor sua autoridade, os Papas não a deponham como liberais em favor de um Povo de Deus considerado ao modo democrático (e supostamente dotado de um sensus fidei anterior e superior à regra do magistério). Só à modalidade não-liberal do exercício da autoridade papal se prometeu e assegura a assistência do Espírito Santo.

b) Na ciência teológica, é Santo Tomás o mestre principal, e isso por afirmação do próprio magistério hierárquico, que o declarou Doutor Comum da Igreja. Já “um simples professor de seminário”, diz ainda o Padre Calderón, “é um repetidor que, para ser crido, deve fundar cada uma de suas afirmações em textos explícitos de Santo Tomás; participa da ciência do Angélico de maneira puramente instrumental. [O Cardeal] Caetano, em contrapartida, é um mestre auxiliar, tão compenetrado do pensamento tomista, que merece ser crido quando interpreta e prolonga sua doutrina. Este tem uma autoridade participada à maneira de causa segunda: o que move a aceitar sua doutrina é formal e principalmente a autoridade de Santo Tomás, mas secundária e como que materialmente também move sua autoridade pessoal, na medida em que seu intelecto participa do hábito teológico do Doutor Angélico”. (Estamos porém convictos de que o Padre Álvaro Calderón não é um simples professor de seminário nem, pois, um mero repetidor da doutrina de Santo Tomás, mas, como Caetano, um verdadeiro mestre auxiliar do Aquinate.)

Pois bem, os leigos que, como Sidney e eu, são chefes de família e especialistas em certas ciências não podem julgar-se, quanto às ciências de Deus, mais que repetidores de segundo grau de Santo Tomás e de seus mestres auxiliares. Há algo mais, porém: se é um fato que já desde a revolução francesa, devido aos ataques sofridos pela Igreja por revolucionários de todas as cores, alguns leigos tiveram de participar, como repetidores de segundo grau, da linha de frente da luta contra o liberalismo e suas seqüelas (pense-se num Louis Veillot, pense-se num Jean Ousset), quanto mais tal não será uma necessidade após o Concílio Vaticano II! Com efeito, como diz ainda o Padre Calderón (ibid., 138), “a fé é o fundamento primeiro da unidade e existência mesma da Igreja, de maneira que, quando a fé está em perigo, todos os cristãos têm o grave dever de sair em sua defesa. Sendo esse um dever positivo, isto é, que não proíbe mas manda fazer algo, obriga segundo a condição das pessoas e a oportunidade. Como o Papa e os bispos diocesanos têm de Cristo o carisma da verdade para definir o dogma revelado, são eles os primeiros obrigados a defender a fé, discernindo com sua autoridade qual é a verdade católica em face das ameaças do erro. Mas os simples fiéis não são isentos de obrigação, porque, embora não lhes compita definir a doutrina, não lhes basta crer retamente em seu íntimo, senão que, para glória de Deus e utilidade do próximo, também são obrigados à profissão exterior e pública da fé: ‘Quando a fé está em perigo’, diz Santo Tomás [Suma Teológica, IIa-IIae, q. 3, a. 2, ad 2], ‘todos são obrigados a propalar sua fé aos demais, quer para instrução dos outros fiéis, quer para confirmá-los nela ou para reprimir o ultraje dos infiéis’” (negrito nosso). É que, conquanto “o modo e o grau de obrigação da Hierarquia e dos simples fiéis sejam diversos, como porém a fé é um bem comum fundamental na Igreja, em ordem à defesa da fé há certa igualdade entre todos os cristãos” (P. Calderón, ibid., p. 136).

Pois bem, com esta obrigação nos sentimos Sidney e eu, como, repito, especialistas em determinadas ciências; e cumprimos esta obrigação precisamente e justamente como repetidores de segundo grau de Santo Tomás e de seus mestres auxiliares, o que se pode facilmente comprovar pela quantidade imensa de citações que deles fazemos a cada passo. É a marca da nossa convicta submissão à sua ciência superior, e, se por acaso alguma vez algo do que dissermos discrepar do que dizem eles, não será senão por equívoco, nunca por ousadia indevida, razão por que sempre acataremos qualquer justa correção que nos façam quanto a isso — especialmente se vier dos eclesiásticos que mantêm na Igreja a fé segundo o magistério de sempre. Que falta, aliás, faz a Sagrada Congregação do Índice, e a obrigação de submeter qualquer escrito, especialmente os de leigos que tratam de teologia, ao nihil obstat e imprimatur das competentes autoridades hierárquicas! Com efeito, com tal obrigação, quantos “humanismos integrais” não se teriam proscrito oportunamente?!

Mas de uma coisa não abriremos mão nunca, por dever de confissão da fé e da Realeza universal de Nosso Senhor Jesus Cristo: atacar com todas as nossas forças e capacidades o liberalismo em todas as suas manifestações e tentáculos.

Que é o liberalismo? Respondamo-lo brevemente:

a) Antes de tudo, é a conseqüência mais imediata do humanismo, ou seja, da revolta da carne contra a santidade, do humano “não servirei” a Deus, do pôr-se o homem a si mesmo como fim último em lugar do Senhor.

b) Por isso mesmo, o liberalismo é pecado, como o diz D. Félix Sardá y Salvany no livro de mesmo nome (que se pode encontrar em statveritas.com.ar); e pecado sumo, razão por que foi condenado por Pio IX no Syllabus. (E para que não se pense que aquele é um livro de menor importância, vejamos algo do que diz a Nota Editorial daquela sua edição: “[...] A primeira [edição do livro] apareceu no final do ano de 1884. [...] A obra manuscrita foi previamente submetida à censura de esclarecidas personalidades e à do célebre P. Valentín Casajuana, da Companhia de Jesus, Professor em Roma. Uma vez publicada, valeu para seu Autor as aprovações mais altas e expressas da Igreja e os encômios mais apreciados de seus Hierarcas. A Sagrada Romana Congregação do Índice submeteu O Liberalismo É Pecado aos mais diligentes exames e deu uma sentença sumamente laudatória, ao mesmo tempo que desautorizava o folheto do Cônego D. de Pazos que queria ser una refutação da obra de Sardá. O Papa Leão XIII em pessoa quis formar um juízo do livro e o leu na versão italiana que se imprimiu para Sua Santidade. Deu-o também a ler a seu irmão, o Cardeal Pecci, e ambos conceberam dele o mais favorável conceito. Os Prelados do Equador fizeram sua a doutrina da obra em Pastoral coletiva que figura em várias de suas edições”. E eis a sentença da Sagrada Romana Congregação do Índice [idem]: ‘[...] Excelentíssimo Senhor: A Sagrada Congregação do Índice recebeu denúncia do opúsculo intitulado O Liberalismo É Pecado, cujo autor, D. Felix Sardá y Salvany, é sacerdote desta sua diocese: a qual denúncia se repetiu juntamente com outro opúsculo, intitulado O Processo do Integrismo [...] Refutação dos Erros Contidos no Opúsculo ‘O Liberalismo É Pecado’; o autor deste segundo opúsculo é D. de Pazos, cônego da diocese de Vich. Razão por que esta Congregação aquilatou com maduro exame um e outro opúsculo com as observações feitas; mas no primeiro nada achou contra a sã doutrina, merecendo antes louvor seu autor, D. Félix Sardá y Salvany, porque com argumentos sólidos, clara e ordenadamente expostos, propõe e defende a sã doutrina na matéria que trata, sem ofensa de nenhuma pessoa. Mas não formou o mesmo juízo do outro opúsculo, publicado por D. de Pazos, porque ele necessita de correção em alguma coisa. Ademais, não se pode aprovar o modo injurioso de falar de que o autor se vale, mais contra a pessoa do Sr. Sardá que contra os erros que se supõem no opúsculo deste escritor. Daí a Sagrada Congregação ter mandado que D. de Pazos seja admoestado por seu próprio Ordinário, para que retire quanto seja possível os exemplares de seu referido opúsculo; e doravante, se se promover alguma discussão sobre as controvérsias que podem originar-se, abstenha-se de quaisquer palavras injuriosas contra as pessoas, segundo a verdadeira caridade de Cristo: ainda com mais motivo porque o nosso Santíssimo Padre Leão XIII, ao mesmo tempo que recomenda muito que se desfaçam os erros, não quer nem aprova as injúrias feitas, principalmente, a pessoas destacadas em doutrina e piedade”.)

c) Se o liberalismo é o efeito mais imediato do humanismo, o modernismo condenado por São Pio X é o liberalismo que se quer católico. E a “nova teologia” que sairá vitoriosa no Concílio Vaticano II nada mais é que o modernismo com nova roupagem.

d) Na ordem das idéias, são os seguintes os três princípios liberais, de que tudo o mais nele decorre:

● soberania e independência do indivíduo com relação a Deus e sua autoridade;
● soberania e independência da sociedade com relação à Igreja e à lei natural, ou seja, a Deus;
● liberdade de pensamento, expressão e associação com relação à Revelação, à Igreja e à lei natural, ou seja, a Deus.

e) Derivam de tais princípios:
● a liberdade religiosa;
● a supremacia do Estado sobre a Igreja;
● o ensino laico sem nenhum laço com a Religião;
● o casamento não-sacramental;
● a arte não-ordenada ao fim último do homem;
● ciências e filosofia que se voltam contra o Criador e rejeitam ser instrumentalizadas pela teologia, e universidades sem a Sacra Ciência, as quais, como diz o Padre Calderón, são por isso mesmo como corpos mortos, sem alma.

Ou seja, em uma palavra: a absoluta secularização da vida dos povos.

f) Na ordem dos fatos, o liberalismo é um conjunto de obras e conseqüências que se inspiram naqueles princípios e seus corolários ou deles resultam. Exemplos:

● as perseguições à Igreja, às ordens religiosas, aos símbolos católicos;
● o indiferentismo religioso e o ateísmo;
● a guerra sistemática ao Catolicismo e a todas as suas sagradas tradições (como o matrimônio) em todos os meios de comunicação, em todas as artes;
● sistemas filosóficos e artísticos crescentemente anticristãos: racionalismo, idealismo, romantismo, existencialismo, marxismo, etc.;
● licenciosidade ou libertinagem moral crescente, com diversões e costumes cada vez mais bestiais;
● violência crescente (até entre pais e filhos e, sobretudo, contra o feto) e a crescente corrupção dos povos, do poder público e da economia;
● decadência cultural e civilizacional aguda;
● o capitalismo e o comunismo, ambos sistemas econômicos decorrentes do pecado liberal da avareza ou ganância, e que tendem a desagregar a família e tirar ao homem o tempo para a religião e a contemplação, transformando-o em peça de um enorme e impessoal maquinismo;
● o crescente domínio das mentes pela propaganda política, que é o motor mesmo da democracia liberal, e pela propaganda econômica, que é o motor mesmo do reino das megacorporações capitalistas, da grande indústria vinculada ao capital financeiro, dos fundos de pensão e da rede cada dia mais vasta e estreita das ONGs;
● enfim, o mundo atual, ou seja: a fusão da mega-economia capitalista com métodos neo-esquerdistas de gestão e governo, tudo condimentado pelo “é proibido proibir” do Maio de 68 francês e tendente a um governo mundial (ou, em termos escatológicos, a preparar a vinda do reino do Anticristo).

Mas também no campo especulativo filosófico-teológico o liberalismo tem suas origens e importantes conseqüências:

● origina-se ele, por um lado, no De Monarchia de Dante, como tantas vezes já o dissemos; mas, por outro lado, no sistema de Duns Scot e sua hipertrofia da vontade em detrimento do intelecto, e no de seu discípulo Guilherme de Ockham, com sua navalha que corta o que é propriamente precípuo no intelecto humano; desses dois homens medievais decorre toda a sucessão psicopatológica de Descartes, Malebranche, Hume, Kant, Hegel, Marx, Husserl, etc.;

● tudo isso redunda num ensino da filosofia e da teologia (e de sua história) em aparência eclético, mas de fundo antitomista e pois anticatólico — como o diz o próprio magistério da Igreja.

Pois bem, por tudo isso é que, ainda com o objetivo de lutar com todas as nossas forças e capacidades contra a praga do liberalismo, e sempre, no tocante à teologia, com a humildade de repetidores de segundo grau de Santo Tomás e seus auxiliares, é que proximamente começaremos a ministrar: 1) um curso de história da filosofia do ângulo tomista; 2) diversos cursos sobre o tomismo. Logo daremos detalhes aqui, no blog.