sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Corte-e-costura e ainda a Encíclica "Caritas in Veritate" (II)

Carlos Nougué
Na presidência do Concílio Vaticano I (XX ecumênico, sobre a fé e a Igreja), Sua Santidade o Papa Pio IX definiu o seguinte:

1838. Mas, como nestes nossos tempos, em que mais do que nunca se precisa da salutífera eficácia do ministério apostólico, muitos há que combatem esta autoridade, julgamos absolutamente necessário afirmar solenemente esta prerrogativa que o Filho Unigênito de Deus se dignou ajuntar ao supremo ofício pastoral.

1839. Por isso Nós, apegando-nos à Tradição recebida desde o início da fé cristã, para a glória de Deus, nosso Salvador, para exaltação da religião católica, e para a salvação dos povos cristãos, com a aprovação do Sagrado Concílio, ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis.

1840. [Cânon]: Se, porém, alguém ousar contrariar esta nossa definição, o que Deus não permita — seja anátema.”

Por que o citamos? Porque, se o objetivo deste artigo é patentear o corte-e-costura que, por ocasião da encíclica do Papa Bento XVI Caritas in Veritate, uma multidão de não-católicos e de católicos liberais operou no magistério infalível da Igreja (bem como na obra do Aquinate, o que veremos mais adiante), uns para justificar sua crítica àquela encíclica, os outros para apoiá-la, não o podemos fazer senão partindo de pressupostos católicos católicos (com repetição necessária nos dias de hoje), sem os quais não se evidenciaria aquele corte e costura. E o primeiro desses pressupostos tem de ser, necessariamente, a infalibilidade papal, porque é fundando-nos nele que podemos dizer: ou se crê na infalibilidade papal e, por isso mesmo, se crê na integralidade da doutrina cristã que constitui o depósito da fé, ou não se pode crer em nada desta mesma doutrina ou depósito. A fé e a doutrina católicas não são um baú de idéias que podemos selecionar ao nosso arbítrio e bel-prazer, aceitando algumas e rejeitando as demais. Proceder assim é já pôr-se fora do campo católico (ou no campo católico liberal ou humanista, que, como diz o Padre Calderón, só se pode dizer católico ao modo de um câncer), e tal recorte em nossa íntegra doutrina é já, de per si, nada liso.

Mas o que se acaba de dizer requer respostas a algumas objeções.

1) Por que a doutrina católica ou é integralmente verdadeira ou absolutamente não o será? Ora, quem a impõe são os Romanos Pontífices, que são individualmente infalíveis em matéria de fé e moral, razão por que não pode haver contradição entre eles nesta matéria; ou o conjunto dos magistérios da seqüência temporal dos Papas é infalível como cada um deles, ou esta última afirmação não seria verdadeira. Logo, porque cremos na infalibilidade papal individual e pois em que o conjunto dos magistérios papais é ininterruptamente infalível em matéria de fé e moral, por isso mesmo ou a integralidade da doutrina católica que emana dessa seqüência é absolutamente verdadeira (e, pois, em nada contraditória), ou nenhuma das partes dela o será.

2) Se tal é verdade, então por que se rejeita o magistério dos chamados Papas conciliares (ou seja, o magistério fundado nas teses aprovadas no Concílio Vaticano II), tal como, de fato, aqui se rejeitou a referida encíclica do Papa Bento XVI? Mas como tal é possível, se é inegável que quando a totalidade moral dos fiéis católicos professa crer em alguma verdade como de fé não pode enganar-se, sendo o sujeito deste ato a Igreja universal, incluídos os clérigos e os leigos, e o princípio pelo qual se atua a fé sobrenatural? Sucede, porém, que “a propriedade de infalibilidade deste ato não provém exclusiva, nem principal, nem formalmente da fé do povo cristão, mas do Magistério da Igreja, cujo sujeito não é a Igreja universal, mas o Papa e os bispos [sob ele], e cujo princípio não é a fé, mas o carisma da infalível verdade” (Padre Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire). Com efeito, “o magistério da Igreja é regra próxima da fé comum dos cristãos, porque só a ele foi prometida a assistência do Espírito Santo para conservar integralmente e propor indefectivelmente o depósito da fé” (ibdi.). Por isso, a infalibilidade in credendo da Igreja universal se reduz estritamente à infalibilidade in docendo da Hierarquia eclesiástica — e esta sentença, conquanto ainda não se possa dizer dogma de fé, “é todavia doutrina católica certa” (ibid.; grifo nosso). Mas os Papas conciliares não o aceitam, porque, coerentemente com o espírito do Concílio Vaticano II e conforme aos princípios liberal-democratistas que o fundaram, para eles o sentir comum dos fiéis é que é a regra próxima do magistério, “porque a assistência do Espírito Santo teria sido prometida em primeiro lugar à comunidade dos fiéis para viver em cada época o Evangelho, e só em segundo lugar o magistério é assistido para compreender, expressar e autorizar o que o Espírito diz à Igreja” (ibid.). Não seriam os fiéis, portanto, quem deveria seguir as definições do Magistério, mas o Magistério quem deveria acompanhar, digamos, as tendências dos fiéis. Ora, como pensam assim, os Papas conciliares, em vez de querer impor doutrina, depõem sua própria autoridade para fazê-lo; ademais, como diz Mons. Gasser, relator da Deputação da Fé no Vaticano I, “é necessária [para a infalibilidade] a intenção manifestada de definir a doutrina, ou de impor um fim à flutuação com respeito a certa doutrina ou coisa por definir, dando uma sentença definitiva, e propondo essa doutrina para ser defendida por toda a Igreja. Este elemento é certamente algo intrínseco a toda e qualquer definição dogmática sobre a fé ou os costumes ensinada pelo pastor e doutor da Igreja universal e que deve ser defendida por toda a Igreja” (apud ibid.). Como, pois, os Papas conciliares não querem nunca impor doutrina, nem, muito menos, impô-la no sentido dado por M. Gasser, mas tão-somente sugerir temas para o debate entre os fiéis e teólogos; como, ademais, pelo fato mesmo de deporem a autoridade que têm para impor doutrina, eles deixam de ter a assistência do Espírito Santo e perdem o carisma da infalibilidade; por isso mesmo não se está obrigado a aceitar seu magistério, estando-se antes, pelo contrário, obrigado a rejeitá-lo sempre e quando se oponha à doutrina ininterruptamente definida e imposta pelo Magistério ao longo do tempo. (Mas diga-se aos sedevacantistas: também é de fé que, se um dia um Papa conciliar comprometesse sua infalibilidade e quisesse impor doutrina, teria ele nisso, indefectivelmente, a assistência do Espírito Santo; e teríamos todos de aceitar tal doutrina, sob pena de pecado contra a mesma fé.)

3) Mas, segundo a mesma definição dada por Pio IX e pelo Concílio Vaticano I, a assistência do Espírito Santo ocorre “quando o Romano Pontífice fala ex cathedra” e “sobre fé e moral”. Sendo assim, todas as demais formas de declaração papal não derivariam de tal assistência e, portanto, não trariam o selo da infalibilidade? A correta resposta a esta questão tem por princípio doutrinal os chamados “graus de autoridade nos atos de magistério”, graus cuja existência, como diz ainda o Padre Calderón (ibid.), está suficientemente estabelecida, mas cuja natureza não fora tão explicada como a infalibilidade. Com efeito, não só o magistério infalível (ou seja, aquele derivado de pronunciamentos ex cathedra sobre fé e costumes) tem a assistência do Espírito Santo; também a tem o magistério simplesmente autêntico, que por isso mesmo também exige dos fiéis religiosa submissão do intelecto. Sucede, porém, que “a assistência do Espírito Santo é comprometida em diversos graus, segundo a natureza dos diversos atos magisteriais” (ibid.). Explica-o o esquema De Ecclesia, preparatório do Concílio Vaticano II (e, como se sabe, posto de lado no decorrer do mesmo concílio). Com efeito, segundo ele, é doutrina católica certa que o magistério simplesmente autêntico (ou seja, não ex cathedra) se impõe aos fiéis segundo diversos graus de autoridade, dependentes da maneira diversa de expressar-se: “É necessário prestar obediência religiosa da vontade e da inteligência ao magistério autêntico do pontífice romano, mesmo quando não fala ex cathedra, de maneira que seu magistério supremo seja realmente reconhecido, e que se adira sinceramente ao ensinamento que propõe; fazendo-o segundo o espírito e a vontade por ele manifestados, que se reconhecem quer pela matéria dos documentos, quer pela freqüência da proposição da mesma doutrina, quer pela maneira de expressar-se” (apud ibid.). Seguia nisto, por exemplo, a Pio XII, de acordo com o qual, “para que não se privem de uma ajuda dada por Deus com tão generosa bondade, devem necessariamente prestar esta obediência não só às definições solenes da Igreja, mas também, guardando o modo devido – servato modo –, às outras constituições e decretos pelos quais algumas opiniões são proscritas e condenadas como perigosas ou más”. Ora, exatamente por isso é que “o critério de verdade do magister eclesiástico é a assistência do Espírito Santo atualizada por sua intenção ministerial, pois para falar em nome de Cristo ele não tem senão de fazê-lo intencionalmente; de maneira que [...], quanto mais impositiva for a intenção com que propõe sua sentença, mais assistida será pelo Espírito Santo e menos margem de erro terá” (Padre Calderón, ibid.). Se assim é, o magistério simplesmente autêntico da Hierarquia goza da assistência do Espírito Santo “em maior ou menor grau, tendo então sua sentença maior ou menor autoridade diante do católico fiel, segundo os diversos graus da intenção magisterial, que vão da probabilidade à certeza; devendo estes julgar-se more humano, quer dizer, segundo os critérios com que os homens costumam julgar as sentenças de seus mestres: ou pelo que expressamente dizem, ou pela matéria, ou pela solenidade do ato, ou pela freqüência com que são ensinadas” (ibid.). Ora, pelo dito, o discurso de ocasião do Papa Pio XII, ao fim da II Guerra Mundial, em que exaltou a democracia em geral não pode ter o mesmo grau de autoridade que o de seus escritos em que condena a democracia liberal. Mas o magistério dos Papas conciliares, pela razão de nele não se comprometer em nenhum grau a infalibilidade pontifícia, não tem nenhum grau de autoridade doutrinal (nem sequer naquilo em que eventualmente coincida com o magistério anterior, porque, com efeito, quem o tem é este, dado que no conciliar, ainda nisto, segue havendo defeito absoluto de intenção magisterial).

4) A polêmica com respeito à Encíclica Caritas in Veritate gira em torno do direito das gentes, das relações internacionais e de um possível governo mundial, o que evidentemente se vincula ao assunto das relações entre Igreja e estado. Mas será este assunto matéria de fé e costumes? Ou seja, será matéria capaz de infalibilidade papal ou de assistência (em qualquer grau) do Espírito Santo? Comece-se por responder a isto com outra pergunta: é matéria de fé e de moral o tema físico da origem do universo, ou seja, se teve início com um big-bang ou não? Enquanto tema físico, certamente não o é; mas, admitido o big-bang enquanto hipótese, já seria matéria de fé o afirmar ou negar que foi Deus quem criou do nada e no tempo aquela ínfima e altamente concentrada partícula de energia (como se diz modernamente) ou de luz (como dizia o Bispo Robert Grosseteste no século XIII...) — sendo anátema o negá-lo. Similarmente, não é matéria de fé nem de moral escolher em determinado país entre dois ou mais regimes políticos naturalmente legítimos; mas, sim, o será se se trata de afirmar ou negar que todo e qualquer regime político tem de ordenar-se ao fim último do homem, Deus, e ao poder encarregado por Deus mesmo de prover o espiritualmente necessário para a salvação não só de cada indivíduo, mas também das multidões de indivíduos que constituem as cidades ou estados — sendo igualmente anátema o negá-lo.

Pois bem, como veremos exaustivamente na próxima parte deste artigo, o que se acaba de dizer tem fundamento no magistério anterior ao Concílio Vaticano II; fundamento solidíssimo, conquanto, como igualmente veremos, não isento de lapsos. Mas lapso não quer dizer contradição; e contradição, neste assunto como em quaisquer outros, não houve entre os magistérios papais (que em verdade se reduziam a um) até a segunda metade do século XX, pelas razões já aduzidas.

Damos a seguir uma lista de textos do Novo Testamento e de documentos papais (que sempre decorrem da Revelação) de algum modo representativos da posição católica católica acerca não só das relações entre Igreja e cidade, mas também deste seu desdobramento natural que são as relações entre Igreja e império e, pois, entre Igreja e um eventual governo mundial:

Mateus XXII; Lucas XI; Lucas XXII; Apocalipse V; Romanos XIII; I Pedro II; Documento de excomunhão e deposição de Henrique IV (São Gregório VII); Epístola Sicut universitatis (Inocêncio III); Bula Unam Sanctam (Bonifácio VIII); Constituição Licet iuxta doctrinam (Erros de Marsílio de Pádua e de João de Jandun sobre a constituição da Igreja; João XX,); Encíclica Quanta cura (Pio IX); o Syllabus (Erros sobre a Igreja e seus direitos; Erros sobre a sociedade civil considerada quer em si mesma, quer em suas relações com a Igreja; Erros sobre o principado civil do Romano Pontífice; Pio IX); Encíclica Etsi multa luctuosa (Pio IX); Encíclica Quod Apostolici muneris (Pio IX); Encíclica Diuturnum illud (Leão XIII); Immortale Dei (Leão XIII); Encíclica Libertas, praestantissimus (Leão XIII); Encíclica Sapientiae christianae (Leão XIII); Encíclica Annum Sacrum (Leão XIII); Encíclica Rerum novarum (Leão XIII); Encíclica Graves de Communi Re (Leão XIII); Encíclica Vehementer Nos (S. Pio X); Encíclica Ubi arcano (Pio XI); Encíclica Quas primas (Pio XI); Encíclica Divini illius magistri (Pio XI); Encíclica Quadragesimo anno (Pio XI); Encíclica Firmissimam constantiam (Pio XI); e Encíclica Summi Pontificatus (Pio XII).

Vejamos se após isto ainda será possível recortar o magistério da Igreja anterior ao Concílio Vaticano II para tentar fazê-lo dizer o que não diz.

(Continua.)


Em tempo 1: Resta ainda uma dupla objeção, que não pode ficar sem resposta. Por um lado, documentos pontifícios como Au milieu des sollicitudes (Leão XIII), como afirmam setores católicos tradicionais, parecem contrariar a doutrina de sempre da Igreja sobre as relações entre ela e os estados, para estimular, no caso, um ilegítimo ralliement; por outro lado, ao mesmo tempo que lança a Carta Magna da política católica que é a Quas primas, Pio XI parece errar gravemente, na prática, ao contribuir de algum modo para o esmagamento do movimento cristero pelo regime comunista-maçônico do México; e coisas semelhantes que se deram no pontificado de outros papas. Resposta. Quanto à primeira, pode um Papa num mesmo documento cometer algum erro de caráter prático e manter, paralelamente, a pureza e justeza doutrinais; também pode num documento de caráter eminentemente prático equivocar-se em toda a linha, sem com isso se equivocar em questões de doutrina. (Com respeito especificamente ao referido documento de Leão XII, vê-lo-emos na continuação deste artigo.) Quanto à segunda, questão delicada que especialmente os leigos devemos evitar, diga-se algo similar, mas complementar, ao que se disse quanto à primeira: Cristo não prometeu a assistência infalível do Espírito Santo à prática de governo dos Papas; nem os Papas empenham em nenhum grau sua infalibilidade em atos concretos de governo; tal assistência e tal infalibilidade têm que ver unicamente com sua autoridade magisterial.
Adendo do Sidney: O demônio se vale da confusão para fomentar a cizânia e perder as almas. A vida cada vez mais me dá provas disto. Pois bem: como nesta semana procurou-me um distintíssimo senhor para, aos mais altos brados, falar cobras e lagartos da FSSPX e, por extensão, sobre algumas pessoas ligadas a ela no Brasil (usando os argumentos ad hominem, ad mulieribus e, também, “ab asnus”), sem contudo dignar-se a responder a nenhuma das objeções que eu lhe fizesse; e como eu soube, de fonte fidedigna, que estão a chamar-nos a mim e ao Nougué de sedecavantistas (artifício catalográfico bem mais fácil do que responder a objeções, prática típica de alguns católicos liberais, tutti buona gente), anuncio que em breve o Contra Impugnantes encerrará a série de textos sobre o sedevacantismo. Com um eloqüente ponto final depois do qual lançar-nos esse epíteto será simplesmente ridículo.