sábado, 18 de julho de 2009

Ramon Llull e as Cruzadas


Sidney Silveira
Eis o próximo livro da Sétimo Selo, que já está no forno: Raimundo Lúlio e as Cruzadas. Nele apresentamos (em edição trilíngüe: latim, catalão e português) três obras do peculiar autor medieval sobre este tema comumente mal interpretado por ideólogos os mais variados. Noutro post, falarei mais sobre a obra. Por ora, fiquem com o começo da Nota dos Editores, assinada por mim e que precede os demais textos da edição. Também falaremos (antes do lançamento do livro) um pouco mais sobre o caráter das Cruzadas, a partir de uma perspectiva histórica realista.


BREVE NOTA DOS EDITORES

Quando o Papa Inocêncio III convocou o IV Concílio de Latrão,[1] por intermédio da bula Vineam Domini Sabaoth (de 10 de abril de 1213), já se haviam passado quase cento e vinte anos desde a Primeira Cruzada,[2] proclamada em 1095 por Urbano II com o objetivo expresso de libertar Jerusalém e a Terra Santa do jugo muçulmano. O cânone 71º desse Concílio (Expeditio pro recuperanda Terra Sancta) garantia àqueles que de alguma forma contribuíssem com a luta a completa remissão dos pecados, desde que, sinceramente arrependidos e com o coração contrito, passassem pela confissão auricular [3] — espécie de preparação sacramental prévia para o cristão que, pondo em risco a própria vida, se aventurasse numa expedição levada a cabo no contexto da defesa da fé.[4] A partir de então, a Cristandade organizou-se para esta que ficou vulgarmente conhecida como a Quinta Cruzada, entre 1217 e 1221, sob o pontificado de Honório III.

Aduzimos este exemplo apenas para advertir que, se um historiador perde de vista as motivações religiosas da luta armada dos cristãos contra os infiéis — apontadas em farta documentação pelas autoridades eclesiásticas —, está ipso facto incapacitado para emitir sobre elas um juízo histórico equilibrado. Acabará, quer o queira, quer não, por instrumentalizar a história e pô-la a serviço de alguma ideologia.[5] Isto é o que fazem muitos escritores cujo único zelo parece ser o de dar às fontes primárias que analisam uma intenção diametralmente oposta às que estão consignadas nos documentos. Pressupor que todas as Cruzadas tivessem um objetivo meramente político ou econômico, sem trazer à luz nenhum registro da autoridade eclesiástica em que tais motivos estejam descritos ou pelo menos insinuados, é um dentre tantos exemplos encontradiços em certa historiografia daninha, que pretende recontar a história da Igreja a partir de ideologias que lhe são frontalmente adversas. O resultado dessa peculiar hermenêutica compõe quase sempre o quadro sombrio de uma Igreja autoritária, interessada tão-somente em fins políticos, em bens materiais e no domínio indevido sobre a vida das pessoas.

A consideração das fontes eclesiásticas a respeito do tema (bulas, decretos pontifícios, encíclicas, concílios, etc.) é o primeiro passo para uma genuína aproximação da verdade histórica, ainda que de maneira assintótica.[6] Mas isto com duas importantes ressalvas: 1ª. é fundamental o historiador conhecer qual seja, de acordo com a Igreja, o caráter do Magistério (as suas premissas teológicas, os seus fins, o seu sujeito, os seus atos, os seus níveis hierárquicos, os seus órgãos principais e subsidiários, os graus de comprometimento doutrinal, etc.); . antes de aventurar-se a temerários vôos interpretativos, o historiador precisa ater-se, primacialmente, ao que informam esses documentos. Um exemplo de desvio desta norma são as opiniões antipapistas que pululam na historiografia contemporânea, as quais têm o sestro de atribuir à autoridade suprema da Igreja intenções que não estão assinaladas nas fontes, como por exemplo a de que o papado ou a Cúria eram movidos por interesses menores, como o de afirmar-se politicamente.

Em se tratando de autor cristão medieval que tenha abordado um tema ligado à ação política, como é o caso de Lúlio, tais pareceres ideológicos afloram quando se ignora o imenso cabedal de fontes eclesiásticas acerca do papel que a política deve ocupar, de acordo com a doutrina da Igreja. Não sendo este o lugar de aprofundar a questão, apontemos tão-somente um ponto crucial em que o Magistério e — seguindo-o de perto — alguns dos maiores teólogos e Doutores da Igreja coincidem: tanto os homens como as sociedades estão ordenados ao fim último, cujo usufruto é contemplar beatificamente a essência divina. É enfática a doutrina quanto a este ponto, ao frisar que a autoridade política tem caráter meramente instrumental, em vista da salvação querida por Deus para todos os homens.

Dizia a este respeito Bonifácio VIII na bula Una Sanctam, de 18 de novembro de 1302: “(...) este poder comporta duas espadas, e todas as duas estão em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Esta última deve ser usada para a Igreja (pro Ecclesia), enquanto a primeira deve ser usada pela Igreja (ab Ecclesia). O poder espiritual deve ser manuseado pelos sacerdotes; o temporal, por reis e cavaleiros de acordo com o consenso e a vontade dos sacerdotes. Uma espada deve estar subordinada à outra espada, e a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade espiritual (et temporalem auctoritatem spirituali subiici potestati). (...) A verdade atesta: o poder espiritual pode estabelecer o poder terrestre e julgá-lo, se não for bom (Nam, veritate testante, spiritualis potestas terrenam potestatem instituere habet, et iudicare, si bona non fuerit)”.[7]

O que se diz das interpretações forçosas acerca das medidas político-prudenciais do papado medieval e dos Concílios no tocante às Cruzadas serve, igualmente, para o pensador catalão Raimundo Lúlio (Ramon Llull), incensado como o precursor do que hoje se convencionou chamar de “diálogo inter-religioso”. Ocorre o seguinte: para alguns desses valorosos e eruditos historiadores, as três obras do autor catalão que apresentamos neste volume são uma pedra de tropeço, pois nelas Lúlio mostra um ímpeto cruzadístico verdadeiramente impressionante, ao exortar o Papa Nicolau IV a reiniciar as Cruzadas (após a queda, em 1291, do último reduto cristão na Palestina, a cidade de São João d’Acre); ao propor táticas para levar os cristãos à vitória definitiva; ao falar ao Papa da necessidade de fazer uma guerra permanente contra os sarracenos; ao afirmar que “os anjos do Paraíso e os santos desejam que a Terra Santa e outras terras que os infiéis tomaram dos latinos sejam recuperadas”; etc.

CONTINUA (...).

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[1] A importância do IV Concílio de Latrão pode ser mensurada, entre outras coisas, por duas doutrinas concernentes à fé solenemente proclamadas naquela ocasião — além da condenação formal das heresias trinitárias do monge cisterciense Joaquim de Fiore e da convocação de mais uma expedição militar para libertar a Terra Santa, em poder dos muçulmanos. 1ª. Fora da Igreja não há salvação (“Una vero est fidelium universalis Ecclesia extra quam nullus omnino salvatur); 2ª. A Virgindade Perpétua de Maria (Et tandem unigenitus Dei Filius Iesus Christus a tota Trinitate communiter incarnatus ex Maria semper virgine).
[2] Nesta breve nota, preferimos utilizar o termo “Cruzada” por uma simples convenção historiográfica e também para facilitar a compreensão dos leitores não familiarizados com estas questões terminológicas. A este problema se atém o texto da Introdução ao presente volume.
[3] “Nos igitur omnipotentis Dei misericordia et beatorum apostolorum Petri et Pauli auctoritate confisi ex illa quam nobis licet indigne Deus ligandi atque solvendi contulit potestate omnibus qui laborem propriis personis subierint et expensis plenam suorum peccaminum de quibus liberaliter fuerint corde contriti et ore confessi veniam indulgemus et in retributione iustorum salutis æternæ pollicemur augmentum”.
[4] Que as motivações dessa luta armada contra os infiéis fossem de defesa da fé (e, na perspectiva da Igreja, em favor da salvação das almas dos eleitos pela presciência divina) é o pressuposto de todos os documentos deste Concílio. A propósito, a defesa da fé tem sempre em vista o bem comum da Igreja, ainda quando as ações implicadas se dêem no plano político. Quando, por exemplo, diz-se que a heresia deve ser combatida por ser fruto da cegueira instilada pelo “pai da mentira” (pater mendacii), vale frisar: quer o historiador acredite ou não no demônio, quer acredite ou duvide da insensatez das doutrinas heréticas ali aludidas, não é lícito nem hermeneuticamente defensável que pressuponha haver, por trás dessa razão claramente expressa no documento eclesiástico, outras motivações ocultas, de ordem política ou econômica. A menos que estivessem consignadas nas fontes.
[5] Cunhado no livro Elements d’idéologie (1801) por Antoine Destutt de Tracy, discípulo de Condillac — ambos liberais revolucionários —, o termo “ideologia” exerce ali, segundo o próprio autor, o papel de “filosofia primeira” em substituição a qualquer metafísica e a qualquer religião. O que, porém, quer dizer precisamente De Tracy ao falar de “filosofia primeira”, já que não se trata de metafísica? Ora, esta sempre fora considerada a filosofia primeira por tratar, justamente, das coisas que são primeiras na realidade: Deus incluído, e acima de tudo. A “ideologia” do francês tinha o exato sentido de “ciência das idéias”, e, como uma ciência ou filosofia se define pelo seu objeto, e como a “ideologia” de De Tracy se substituía à metafísica como “filosofia primeira”, logo, para ele as coisas primeiras na realidade só podiam ser... idéias! O que se diz da “ideologia” de De Tracy se pode também dizer de todas as ideologias: trata-se, sempre, de um apartamento entre as idéias e as coisas, uma colocação indevida e arbitrária de uma idéia (ou conjunto de idéias) no lugar dos entes. Em resumo: uma não-aceitação das coisas como são. Essa falta de docilidade para com os dados da realidade é um dos signos por excelência do espírito antifilosófico.
[6] Por melhor embasado que seja, o juízo histórico terá sempre o caráter de interpretação de uma presumível verdade acerca do passado, diferentemente do juízo metafísico, que parte de evidências extraídas de primeiros princípios indemonstráveis e chega a conclusões necessárias. Como bem afirma Juan Cruz Cruz em Filosofia da História, embora o juízo histórico possua certeza e alcance um alto grau de verossimilhança, carece de uma evidência absoluta, lógico-apodíctica. Daí que a história seja uma recriação intencional do passado a partir de vestígios consignados nas fontes escritas ou em tradições orais. Para ser historiador, não basta compulsar mil arquivos; é preciso reunir a maior quantidade de informações e interpretá-las à luz de algum método. Ver. Cruz Cruz, Juan. Filosofia da História. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2007, pp. 13-23.
[7] Papa Bonifácio VIII. Una Sanctam, 18/11/1302 (grifos nossos). Esta sempre foi a doutrina comum da Igreja, e escolhemos a presente bula por ter sido consignada no mesmo período em que Lúlio escrevia os textos publicados na presente edição — para mostrar quão afinado estava ele com a Igreja, neste ponto específico. E não é ocioso deixar o registro de que se trata de doutrina multissecular, como se pode confirmar por uma Encíclica escrita mais de 700 anos depois: “Não se neguem, pois, os governantes das nações a dar por si mesmos e pelo povo públicas mostras de veneração e de obediência ao império de Cristo, se porventura pretendem conservar incólume a sua autoridade” (grifos nossos). Papa Pio XI. Quas Primas, nº 16, 11/12/1925.