quinta-feira, 23 de abril de 2009

Considerações teológico-dogmáticas (sobre “vestígios” e “elementos”)

Sidney Silveira
Um queridíssimo amigo — jovem de notáveis talentos que merece todo o meu respeito e tem a minha mais sincera admiração —, ao ler o último texto do Contra Impugnantes acerca das relações Estado-Igreja (assunto que, a propósito, merecerá uma longa série de artigos meus e do Nougué), e sabendo da minha posição de apoio doutrinal, em linhas gerais, à posição da Tradição defendida pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X – FSSPX, fez ontem uma objeção interessante, num tema eclesiológico:

“Os ortodoxos consagram validamente a Eucaristia, embora o façam ilicitamente. Ora, isto indica que o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo estão presentes nas hóstias por eles consagradas. Considerando, pois, esta Presença Real, como alguém poderia dizer que Cristo não está presente na Igreja Ortodoxa, ou, em outros termos, que a Igreja Católica é a única Igreja de Cristo?”.

Na resposta a esta interessante objeção, por ora, evitarei trazer uma avalanche de menções do Magistério da Igreja, de acordo com as quais o sacramento válido dos cismáticos, hereges ou excomulgados não produz efeito (no caso, a Graça e o caráter), ou seja, não tem eficácia; é fruto seco. Dar-lhe-ei pessoalmente as citações do Magistério bimilenar, que reunirei com muito gosto. Por ora, no entanto, vejamos o que ensina o Doutor Comum da Igreja, o nosso amado Aquinate, a respeito de se hereges, cismáticos e excomulgados podem, ou não, consagrar (Suma Teológica, III, q, 82, a.7):

Respondeo. Alguns disseram que os hereges, cismáticos e excomungados não podem consagrar este sacramento (da Eucaristia) porque estão fora da Igreja. Mas nisto equivocam-se, pois, como diz Santo Agostinho, “uma coisa é ter, e outra é ter retamente” e “uma coisa é não dar, e outra é não dar bem”. Ora, os que receberam dentro da Igreja, com a ordenação sacerdotal, o poder de consagrar têm-no retamente, embora não façam reto uso dele se, depois, se separam por heresia, cisma ou excomunhão. Os que se ordenam já separados nem têm este poder legitimamente, nem o usam retamente. Mas que têm o poder [de consagrar] é evidente, pois, como diz Santo Agostinho, quando voltam à unidade da Igreja não são re-ordenados, pois ela os recebe com suas ordens. E como a consagração da Eucaristia é conseguinte ao poder da Ordem, os separados da Igreja por heresia, cisma ou excomunhão podem consagrá-la, e, portanto, consagrada por eles, a Eucaristia contém o Corpo verdadeiro e o Sangue de Cristo. Mas não fazem [a consagração] retamente, e pecam ao fazê-lo. Por isto, não recebem o fruto do sacrifício, que é precisamente o sacrifício espiritual”.

"Ad tertium. O sacerdote fala nas orações da Missa em nome da Igreja, em cuja unidade está. Mas na consagração ele fala em nome de Cristo, cujas vezes faz pelo poder da Ordem. Portanto, se é separado da unidade da Igreja, celebra a Missa, consagra o verdadeiro Corpo e o Sangue de Cristo, porque não perdeu o poder [indelével] da Ordem. Mas, por estar separado da unidade da Igreja, suas orações não têm eficácia".

Em suma, o que a Igreja sempre ensinou é que, neste caso, se trata de vestigia Ecclesiae, e tais vestígios jamais haviam sido considerados pelo Magistério solene como capazes de dotar essas comunidades de caráter eclesial, ou seja: desde a instituição da Igreja, por Cristo, até o último quartel do século XX, nunca, jamais, em tempo algum, as comunidades separadas por cisma, heresia ou excomunhão foram consideradas pelo Magistério como verdadeiras “Igrejas”, ou seja, espécies particulares de Igrejas não romanas. A novidade absoluta foi inserida por um golpe semântico, com a troca do conceito de vestigia pelo de elementa, ou seja: para a susceptibilidade ecumênica (de cariz liberal, maçônico, etc.), não podemos dizer que se trata de “vestígios” — pois tal palavra e o conceito que embute podem magoar os ouvidos dos irmãos separados —, mas de “elementos” da Igreja que constituem vínculos estritos, reais, com ela.

O conceito de elementa, em substituição ao tradicional, de vestigia, começa a se forjar — ainda que timidamente e sem a formulação que receberá depois — no Encontro Mundial das Igrejas realizado em Toronto, em 1950; aparece posteriormente na Lumen Gentium do Vaticano II; depois, na Encíclica Unitatis Redintegratio, de João Paulo II; e por fim na Declaração Dominus Iesus, de 2000, da Congregação para a Doutrina da Fé, que diz: “As Igrejas que não estão em perfeita comunhão com a Igreja Católica, mas se manifestam unidas a ela por meio de vínculos estreitíssimos como a sucessão apostólica e a Eucaristia validamente consagrada, são verdadeiras igrejas particulares”. Aqui, é importantíssimo frisar: em todo o Magistério anterior, tal conceito de "elementos" da Igreja fora da Igreja católica simplesmente inexiste. É, portanto, novidade absoluta.

Agora, pergunto: como tais idéias podem conciliar-se com, por exemplo, o seguinte trecho da Encíclica Mortalium Animos, de Pio XI?

“Dizemos à única e verdadeira Igreja de Cristo: sem dúvida, ela é a todos manifesta e, pela vontade do seu Autor, ela perpetuamente permanecerá tal qual ele próprio a instituiu para a salvação de todos. Pois a mística Esposa de Cristo jamais se contaminou no decurso dos séculos nem, em época alguma, poderá ser contaminada. (...) Dado que o Corpo Místico de Cristo, isto é, a Igreja, é um só, compacto e conexo, (...) seria estultície alguém afirmar que dele podem constar membros desunidos e separados. Quem, pois, não estiver unido com ele, não é membro seu (...).”

Ou ainda:

“Acreditamos, pois, que os que afirmam ser cristãos não possam fazê-lo sem crer que uma Igreja, e uma só, foi fundada por Cristo.

Ou ainda:

“Ninguém está nesta única Igreja de Cristo e ninguém nela permanece senão obedecendo, reconhecendo e acatando o poder de Pedro e de seus sucessores legítimos”.

Ou ainda:

“Estes [os separados], se implorarem em prece humilde as luzes do Céu, reconhecerão a única verdadeira Igreja de Jesus Cristo, e, por fim, n’Ela tendo entrado, estarão unidos conosco em perfeita caridade”.

Eu poderia citar outros trechos da Mortalium Animos, e trazer mais do Magistério anterior, mas o que está consignado, por ora, é mais do que suficiente para a nossa pergunta capital: como conciliar esses Magistérios? Num deles, a única Igreja cristã é a católica; noutro, são consideradas perfeitas Igrejas cristãs particulares, entre outras, as que consagram validamente a Eucaristia, caso, por exemplo, dos ortodoxos. Num deles, há vestígios da Igreja insuficientes para imprimir o caráter eclesial; noutro, há elementos da Igreja suficientes para imprimir o caráter eclesial.

Como conciliar isto? Respondeo dicendum quod: é impossível, caros amigos. A menos que se impugne o princípio da não-contradição.

Em tempo: Perguntando-se é lícito receber a comunhão e ouvir a Missa (Missam audire) de cismáticos, hereges e excomungados, diz Santo Tomás (Suma, III, q. 82, art. 9). “Quem atua na causa comum do pecado de alguém, participa dele. (...). Logo, não é lícito receber deles (cismáticos, hereges e excomungados) a comunhão, nem ouvir as suas Missas”.
Em tempo 2: A FSSPX não é cismática, pois sempre rezou a missa una cum Petrus e sempre reconheceu a sucessão apostólica. Sua posição é, portanto, de divergência doutrinal com relação às novidades introduzidas no Magistério desde o Concílio Vaticano II (como por exemplo a que apontamos, de caráter eclesiológico), e isto ficou evidente no começo deste ano, com a volta à unidade visível e a cessação da excomunhão dos bispos consagrados pelo Monsenhor Lefebvre. Mas esta é outra história. Ademais, a FSSPX argúi, para justificar o seu procedimento com relação às novidades introduzidas no Magistério dos últimos 40 anos, o estado de necessidade.
Em tempo3: Ia esquecendo-me de reiterar: ficou evidente que, de acordo com a doutrina tradicional, a validade da consagração da Eucaristia por parte de cismáticos é insuficiente para imprimir o caráter eclesial. É, sim, vestigia Ecclesiae. Ademais, a Eucaristia é um dos sacramentos da Igreja, mas a Igreja não é só a Eucaristia.
Em tempo 4: Uma característica típica do católico liberal culto é não estudar o Magistério anterior ao Vaticano II e nem Santo Tomás de Aquino e outros Doutores, embora estude com grande afinco uma série juristas, economistas, filósofos e “teólogos” liberais.
Em tempo 5: Uma questão, sob um ângulo diametralmente oposto, é comum entre pessoas ligadas à Tradição: é porventura lícito ir à Missa em sua nova forma litúrgica (pós-Vaticano II)? Aqui, para que não haja dúvidas a respeito de minha posição, informo que estou de acordo com uma formulação dos padres de Campos — feita MUITO ANTES que eles formalizassem um acordo com Roma que mudou radicalmente a sua posição: trata-se de uma questão de consciência.