segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Predestinação à salvação (I)

Sidney Silveira
No capítulo da Suma Teológica em que Santo Tomás aborda o tema da predestinação, na minha velha edição de alfarrabista há uma portentosa introdução que, primeiramente, enumera algumas das principais heresias a respeito desse tema de grande interesse teológico. Começo a reportá-la aqui, em atenção a uma amiga muito distante, assim como porque creio ser de grande utilidade para todos:

a) Orígenes, que dizia heterodoxamente o seguinte: Deus predestina todos à Glória, em atenção aos méritos da alma em sua existência anterior à união com o corpo;
b) Os pelagianos admitiam que Deus predestina os homens à Glória em razão dos méritos adquiridos nesta vida terrena;
c) Os semipelagianos afirmavam que Deus predestina à Glória os homens que, por sua própria atividade natural, começam a empreender o caminho da salvação;
d) Alguns teólogos de menor expressão afirmaram, em algumas épocas, que Deus confere a Graça — e com ela a Glória — aos que prevê que farão bom uso dela.

Ainda no tocante à relação entre a predestinação divina e a atividade humana, há dois erros opostos, que se devem consignar: 1º. Alguns pensam que as boas obras e as boas orações podem mudar os desígnios de Deus; 2º. Outros julgam que são inteiramente inúteis e supérfluas as nossas orações e boas obras, porque o que está predestinado por Deus se realizará de qualquer maneira, independentemente da nossa conduta, boa ou má.

Os dados da Divina Revelação com relação a este tema, também enumerados nesta bela edição da Suma, são os seguintes (dentre outros, que omito por uma questão de espaço):

Existência da predestinação: “Vinde, benditos de meu Pai, tomar posse do Reino preparado para vós desde a criação do mundo”. (Mt. XXV, 34).
Efeitos da predestinação: “Aos que [Deus] predestinou, a estes chamou; e aos que chamou, a estes justificou; e aos que justificou, a estes glorificou”. (Rom. VIII, 30).
Os predestinados são eleitos por Deus: “Porque muitos serão os chamados, e poucos os escolhidos” (Mt. XXII, 14). “Se não se abreviassem aqueles dias, ninguém seria salvo; mas, por amor aos eleitos, se abreviarão aqueles dias” (Mt. XIV, 22).
A predestinação é gratuita: Quando a Sagrada Escritura ensina sobre este particular, há quatro proposições:

1ª. O beneplácito da vontade divina é causa de todos os dons que Deus concede aos homens. Por conseguinte, todos esses dons são inteiramente gratuitos (eleição, vocação, conversão, perdão dos pecados, fé, justificação, salvação, glorificação, etc.).
2ª. Deus não é apenas causa dos dons, pelos quais somos chamados, justificados, salvos, etc., mas é também causa de que creiamos, queiramos, obremos o bem e nos salvemos, etc.
3ª. Por isso, não é o homem quem se distingue de outro homem na perseverança final, é Deus quem os distingue, simplesmente fazendo a uns melhores que a outros (isso, para um teólogo liberal, é o fim da picada, pois o teólogo liberal julga a Deus e ao Magistério com critérios humanos, pois perdeu a noção da absoluta transcendência e sobrenaturalidade de Deus, como ainda veremos).
4ª. A glorificação é o último efeito da predestinação, e esta procede de um conhecimento amoroso prévio aos méritos e deméritos humanos, ou, em suma, de uma dileção de Deus. É, portanto, essa dileção divina a causa de Deus predestinar à Glória os eleitos (para não estender o texto por demais, abstenho-me de arrolar, aqui, os incontáveis documentos do Magistério sobre o tema, assim como as passagens da Escritura que ensinam exatamente estes quatro pontos. Noutra ocasião, posso fazê-lo).

Há outros dois aspectos a considerar, ainda na Sagrada Escritura:

A predestinação é certa, infalível e imutável: “Porque se levantarão falsos messias e falsos profetas, e obrarão grandes sinais e prodígios para induzir ao erro, se fosse possível, até mesmo os eleitos”. (Mt. XIV, 24). “Esta é a vontade d’Aquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que Ele me deu, mas que os ressuscite no último dia” (Jo. VI, 39).

A predestinação se realiza por meio de nossa cooperação: “Trabalhai na vossa salvação com tremor e temor, não só quando eu estava entre vós, mas muito mais agora em minha ausência” (Fil. II, 12). Aqui, quando chegar o momento, mostraremos qual é, de acordo com o Aquinate, o modo dessa nossa cooperação.

Antes de adentrarmos no que propriamente Santo Tomás afirma, na referida questão da Suma (I, q. 23), continuemos o caminho frisando que foram anatematizadas pelo Magistério da Igreja, em várias ocasiões, tanto a doutrina de que a predestinação não existe, como a de que possa depender dos nossos humanos méritos, a ponto de, por eles, presumirmos a nossa salvação. Por exemplo: “Ninguém, enquanto vive neste mundo, deve presumir acerca do oculto mistério da divina predestinação, a ponto de crer com certeza que faz parte do número dos predestinados” (Denz. 805). “Deus, bom e justo, elegeu, segundo a sua presciência, da massa comum da perdição, àqueles que predestinou pela Graça à vida eterna” (Denz. 316).

No próximo artigo, falaremos sobre a exposição teológica de Santo Tomás, trazendo um quadro sinóptico. E ao fim, se Deus nos iluminar*, mostraremos o quanto essa doutrina — tanto nas formulações do Magistério, como também na que Santo Tomás deixou consignada — é totalmente contrária ao liberalismo aplicado à teologia.
*Não me refiro aqui, obviamente, à doutrina agostiniana da iluminação, refutada por Santo Tomás num trecho do De Veritate. Trata-se de uma imagem. Mas ainda exporemos amiúde tanto a tese de Agostinho (e o ponto exato em que errou), assim como a definitiva correção que lhe faz Tomás de Aquino.
(continua)