terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Sedevacantismo, um erro capital

Sidney Silveira
Anunciou-se ao final de outro texto que o Nougué apresentará no blog os problemas — insanáveis, sob variados ângulos! — acarretados pela tese dos chamados sedevacantistas, que afirmam o seguinte: a Sede de Pedro está vaga, ou seja: o atual Papa não é Papa, assim como os dois que o precederam também não o teriam sido, em razão de presumíveis heresias em que tenham incorrido. Abro eu o tema, para que ele depois prossiga.

Um dos documentos do Magistério em que os sedevacantistas apóiam a sua tese é a Bula de Paulo IV Cum ex Apostolatus Officio, de 1559, da qual o Nougué falará amiúde noutra oportunidade. Mas lembro desde logo que, em qualquer tese mal formulada, não são os argumentos que determinam a conclusão, mas a “conclusão” que busca qualquer argumento para afirmar-se, como muito bem destaca o Padre Juan Carlos Ceriani, canonista dedicado ao problema de que vamos tratar, ao qual este pensamento se aplica muito bem.

Antes de tudo, vejamos a definição de heresia, tanto no Código de Direito Canônico de 1917, como no Código atualmente vigente.

“É herege quem, após ter recebido o batismo, conservando o nome de cristão, nega pertinazmente alguma das verdades que hão de ser cridas com fé divina e católica, ou as põe em dúvida” (Post receptum baptismum si quis, nomen retinens christianum, pertinaciter aliquam ex veritatibus fide divina et catholica credendis denegat aut de ea dubitat, haereticus est, Código de 1917, nº 1.325, parágrafo 2º).

Ou ainda:

“Chama-se heresia a negação pertinaz, após o recebimento do batismo, de alguma verdade que se há de crer com fé divina ou católica, ou a dúvida pertinaz sobre ela” (Dicitur haeresis, pertinax, post receptum baptismum, alicuius veritatis divina et catholica credendae denegatio, aut de eadem pertinax dubitatio, Código atual, nº 751).

Por ora, não enumerarei os tipos de heresia (formal, material, interna, externa, materialmente oculta, formalmente oculta, pública, notória de fato, notória de direito, etc.). Deixo isto para outra ocasião. Mas, seguindo o que o Padre Ceriani afirma num dos seus livros sobre o tema, deixo registrado que, para comprovar a sua errônea tese, os sedevacantistas precisariam vencer três dificuldades iniciais: 1ª. Mostrar como se prova a heresia formal de alguém, em geral; 2ª. Provar a heresia formal do Sumo Pontífice, especificamente; . Provar a perda do Pontificado, caso o Papa incorresse em comprovada heresia formal. E, depois, resolver ainda o problema de quem aplicaria a pena eclesiástica devida, caso tudo isto se comprovasse.

Dada a relevância do tema, caminhemos devagar e nos fixemos no que o Padre Ceriani — apoiado em vários documentos do Magistério — adverte:

a) Nem toda heresia faz perder a fé. A heresia material (que é o erro involuntário ou então sem pertinácia nem consciência clara) não é imputável.
b) Pode-se perder a fé por outro pecado que não seja a heresia.
c) Nem toda heresia faz incorrer em excomunhão.
d) A heresia externa (a que é manifestada publicamente), pela qual se incorre em excomunhão, não faz perder ipso facto a jurisdição, no caso das autoridades eclesiais.

A estas dificuldades agrega-se, de acordo com Ceriani, o princípio da imunidade judicial do Sumo Pontífice, já que, no tocante à fé, a Santa Sé não pode ser julgada por ninguém, segundo o Código de Direito Canônico e uma longa tradição magisterial, como vemos a seguir:

Nicolau I: Na carta Proposueramus quidem, diz que nem por todos os clérigos, nem pelo povo, nem pelos reis pode a Santa Sé ser julgada. (Dz. 330)
São Leão IX: Na carta Pax hominibus, de 1053, afirma que não é lícito a nenhum homem pronunciar um juízo antecipado contra a Sé Suprema, caso em que receberia o anátema de todos os Padres e de todos os Veneráveis Concílios. (...) Assim, Pedro e seus sucessores têm livre juízo sobre toda a Igreja, e ninguém pode fazê-los mudar de lugar, pois a Sé Suprema por ninguém pode ser julgada. (Dz. 352-353).
São Gregório VII: No seu dito papal nº 19, formula um texto imperioso, nas acertadas palavras do Padre Ceriani: Quod a nemine (romanus Pontifex) judicari ebeat. Em suma: ninguém pode julgar o Papa, quanto à fé.
Bonifácio VIII: Esse Papa faz afirmação simular na Bula Una Sanctam. “Se o poder terreno se desvia, será julgado pelo poder espiritual [inferior]; se o poder espiritual inferior se desvia, será julgado pelo espiritual superior; mas se o poder da autoridade suprema [do Papa] se desvia, só Deus o poderá julgar, pois a nenhum homem é dado esse poder”. (Dz. 469).
Clemente VI: Na carta Super quibusdam, frisa o seguinte: Se creste e crês que tenha existido, que existe e que existirá a suprema e preeminente autoridade, assim como o poder jurídico dos Romanos Pontífices — ou seja: daqueles que foram, de Nós que somos e dos que, no futuro, o serão —, crês então que ninguém pôde no passado julgá-los, nem a Nós no presente e nem aos que virão, no futuro. Todos foram preservados, se preservam e se preservarão para ser julgados somente por Deus, e, no tocante a nossas sentenças [relativas à fé], (...) não se pôde, não se pode e não se poderá jamais apelar a nenhum juiz”. (Dz. 570).

Poderíamos aduzir várias outras citações. Mas estas bastam para mostrar o seguinte: ninguém pode concluir, de direito, que o Sumo Pontífice seja formalmente um herege sem, com isto, emitir no ato um juízo que só pertence a Deus (...a solo Deo, non ad hominibus, potest judicari).

Após vencer essa baita dificuldade, teriam os sedevacantistas de responder ao Concílio Vaticano I, que ensina o seguinte: o Papa não é Vigário da Igreja, mas do próprio Cristo (Dz. 1823). Isto implica que a Igreja não tem o poder de julgar ou de depor um Papa, o que é confirmado pelos cânones 1.556 e seguintes do Código de 1917.

Não trataremos aqui em detalhe dos casos em que houvesse renúncia tácita do Romano Pontífice, ou negligência em assumir o seu supremo cargo (por exemplo: se ele não se apresentasse para a sua consagração), ou de outras conjecturas já tratadas por grandes canonistas do passado — como, por exemplo, as hipóteses de abandono da residência da Santa Sé sem motivo razoável; apresentação do Papa num tribunal civil para contrair matrimônio e fixar residência alhures; seu alistamento em milícias seculares, para atuar no front; afiliação em uma seita acatólica ou cismática, rompendo com isto todo o seu vínculo com o Catolicismo; etc. Nestes e noutros casos de abandono completo e público da fé, poderia alegar-se que a Sede está vacante. Mas poderíamos aplicar tal casuística ao Papa Bento XVI, ao Papa João Paulo II e ao Papa Paulo VI? Firmemente respondemos: não!

O Padre Ceriani diz que os fiéis e toda a Igreja universal poderiam, sim, pensar (nos casos de acachapante evidência) que o Papa caiu materialmente em heresia, mas nunca, jamais, em tempo algum, pensar ou afirmar que tenha caído formalmente em heresia, pois para emitir tal juízo ninguém, seja leigo ou clérigo, tem autoridade — mas apenas Aquele que a delegou a Pedro e a todos os seus sucessores: o próprio Cristo.

(continua, com o Nougué)

Em tempo: Alguns católicos liberais tentaram (nos primeiros meses do Contra Impugnantes) identificar-nos, a mim e ao Nougué, como pessoas contrárias ao Papa atual, como são os sedevacantistas, só porque mencionamos, aqui e ali, o Magistério bimilenar da Igreja. Calaram-se depois de alguns petelecos intelectuais, e também depois de ter a sua malícia exposta aos muitos leitores que o blog vem tendo. Outros ainda querem fazer isso, mas sempre no terreno das pequenas alusões e dos murmúrios de coxia, ou então com a tentativa de atirar-nos “cascas de banana”, como se disse noutro lugar. É claro que essas pessoas não afirmaram nem afirmarão abertamente tais coisas — e outras baboseiras piores, como a de que “excomulgamos” fulano ou sicrano. Entre outras coisas, simplesmente porque têm medo de se expor, ou melhor: têm medo de perder o debate aos olhos das pessoas para quem fazem pose — debate que, na prática, gostariam de vencer sem precisar ter razão. Mas, para isto, precisarão é de um suplemento de testosterona, de uma boa dose de coragem e de muito blá-blá-blá.