segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas (II)

Carlos Nougué
Como disse no artigo anterior, “um aspecto desta série de artigos sobre o sedevacantismo é de minha exclusiva responsabilidade: o vinculá-lo ao que chamo 'pensamento mágico'
por qualquer inversão entre mente e realidade, entre causa e efeito, entre antecedente e conseqüente ou entre premissa e conclusão”. Mais que isso, porém: é sobretudo por este ângulo que tratarei o assunto, até porque o outro aspecto da série não só não é nem de longe de minha responsabilidade, mas está inteiramente contido em obras do Padre Juan Carlos Ceriani e do Padre Álvaro Calderón.

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Diz Rubén Calderón Bouchet em El espíritu del capitalismo (Buenos Aires/Santander, Nueva Hispanidad Académica, 2008) que, quando o homem, “impelido pela soberba, se divorcia das evidências imediatas que o atam à realidade [...], inicia o caminho de uma separação que se irá tornando cada dia mais abismal e completa. A realidade toda acaba por ser absorvida pelo pensamento, e em seu lugar [ou seja, em lugar da realidade] cresce com a força de um vício o gosto pela quimera” (pp. 371-372). Em nossos termos (ver os primeiros artigos da série “Pensamento mágico e bom senso”), à força de tanto inverter causa e efeito ou antecedente e conseqüente, o pensamento mágico acaba por desfazer-se de toda e qualquer causa, ainda que equivocada ou ilusória, para ter por referência única a própria vontade. É essa a gênese das ideologias, cujo objetivo, como já vimos, são quimeras nos dois sentidos principais da palavra: puros produtos da imaginação soberba e verdadeiras monstruosidades, como, com efeito, o são o comunismo e a democracia liberal.

O que chamo de “reconstrução ideal da história” tem gênese algo diferente. Seu ponto de partida é uma conclusão que deriva de fato de uma premissa, mas uma premissa tênue: trata-se antes de uma espécie de impressão, resultante do choque de um ou mais dados da realidade contra determinadas convicções demasiado simplistas. Como porém tal premissa, por tênue, não pode satisfazer nem sequer aquele mesmo que a formula (para não falar dos demais), ele sai em busca de uma ou mais premissas mais sólidas para aquela conclusão, digamos, já pré-tirada. Ora, como toda essa operação é já, de per si, redutora da realidade, sucede que o formulador de tal conclusão pré-tirada não buscará em sua investigação mergulhar na complexidade do real, mas se aferrará como um náufrago à tábua de salvação de uma ou poucas coisas que lhe parecerão ser o centro, o eixo mesmo da realidade, ou seja, que lhe parecerão ser as sólidas premissas que buscava.

Naturalmente, não raro esta espécie de pensamento mágico está mesclada com outra ou outras. Assim, no pensamento liberal típico se misturam a inversão entre causa e efeito, a quimera e a reconstrução ideal da história. Com efeito, para o liberal típico a história se divide em dois períodos principais: a.L. e d.L, ou seja, antes da Liberdade e depois da Liberdade (propiciada pela revolução francesa e similares), assim como para o comunista a história se divide em três períodos principais (com algum sabor de ciclicidade): a sociedade sem classes primitiva, a sociedade de classes e a futura sociedade sem classes, que representará o fim da história e a instauração do paraíso terrestre. Como se vê, no primeiro caso a “luta pela liberdade” é o eixo em torno do qual a história sempre girou, gira e girará, enquanto no segundo a “luta de classes” é o motor que sempre impeliu e impele a história na direção inexorável de uma enteléquia imanente. Mas argüir-se-á: vocês, os católicos, também não reduzem a realidade a uma só coisa, ou seja, a Deus? Não e sim segundo o aspecto por que se olhe: não enquanto para nós Deus é absoluta transcendência e não uma imanência ao modo panteísta; mas sim enquanto Ele é o Ser por si mesmo subsistente, a Causa Primeira, a Causa das Causas, que como tal está presente em todos os seus efeitos, isto é, em tudo quanto é ente ou tem ser por participação do Ser.

Mas diga-se desde já que o tipo de reconstrução ideal da história que nos ocupa, o sedevacantismo, absolutamente não se confunde com o liberalismo nem com o comunismo, que são por essência anticatólicos, ao passo que o sedevacantismo, se se me permite um paradoxo à Chesterton, é “demasiado católico”... Ademais, o sedevacantismo não se constitui de mescla tão complexa quanto o liberalismo e o comunismo (embora seitas sedevacantistas claramente cismáticas como o “Palmar de Tróia” e a “Igreja Latina de Toulouse” pareçam ter também caráter messiânico e, pois, quimérico). Ele se restringe (ou quase, como o veremos) ao que se disse mais acima a respeito de uma conclusão em busca de premissas mais sólidas. Vejamos agora, porém, dois outros tipos de reconstrução ideal da história, mais simples, os quais por isso mesmo nos facilitarão o entendimento do tortuoso universo mental do sedevacantismo.

● Parece inequívoco que nenhuma forma musical se iguala ao canto gregoriano, e isso por três motivos principais: a) ele serve diretamente à liturgia católica, e, como diz Santo Tomás, aquilo que serve a algo que está mais próximo do fim último é superior simpliciter; b) tal porém tem um pressuposto, qual seja, o canto gregoriano é verdadeira arte, e verdadeira arte litúrgica; c) mas é mais adequado a seu fim que qualquer outra forma de verdadeira arte musical litúrgica. Uma coisa, todavia, é reconhecê-lo sem hesitação, e outra, muito diversa, é concluir, como o faz o grande escultor católico francês Henri Charlier (1883-1975) em L’Art et la pensée (Jarzé, Dominique Martin Morin, 1972), que o canto gregoriano é a “única” forma musical boa. Impressionado que está com o choque das demais formas musicais contra a sua convicção exclusivista da superioridade do canto gregoriano, sai em busca, para a sua conclusão, de premissas mais sólidas que aquela impressão e “encontra” uma, à qual se aferrará como a um suposto eixo único da realidade que o ocupa: o canto gregoriano é não só superior a todas as demais formas musicais, mas efetivamente é a “única” forma musical boa, por ser constituído de pura melodia, sem harmonia, e portanto por não estar limitado por nenhum esquema rítmico fixo. Passa-se então, conforme a esse eixo único, à reconstrução ideal da história da música ocidental: a partir do Renascimento, e especialmente durante o Barroco, a música naufragou por causa da invasão da harmonia e das amarras rítmicas. Mas ter-se-á esquecido Henri Charlier que toda a música anterior e concomitante ao canto gregoriano (a grega, a religiosa cortesã da Cristandade, etc.) não era composta de pura melodia, mas também de harmonia, e também era limitada por esquemas rítmicos fixos? Talvez ele não tivesse notícia das belíssimas Cantigas de Santa Maria, do Rei Afonso X, o Sábio. Ainda assim, contudo, não haveria como esquecer duas coisas que, todavia, nosso grande católico francês esquece: a) que o canto polifônico de Palestrina, Tomás Luis de Victoria, etc., reconhecido pelo Concílio de Trento e por tantos papas posteriores como umas das duas formas musicais litúrgicas próprias da Igreja (ainda que inferior ao gregoriano), já não era pura melodia, contando com harmonia precisamente pelo fato de ser polifônico; b) que o canto gregoriano (assim como o polifônico), arte verdadeira, e arte litúrgica verdadeira, é propriamente oração, e por isso se destina propriamente ao interior da igreja, à missa, aos ofícios das horas, etc. Ora, se assim é, seria ilícita a apreciação de música não litúrgica, quer a que louva a Deus mas não é própria para o interior da igreja, quer a que visa meramente, como dizia Bach, a recrear a alma dentro de justos limites? Seria ruim, em outras palavras, toda e qualquer música não litúrgica? Parece óbvio que não. Uma coisa é superioridade, outra exclusividade.

● Negar que a civilização cristã do Medievo foi o ponto alto da Cristandade é próprio dos modernistas. Sim, porque salta aos olhos que foi na Idade Média que mais os governantes se submeteram ao poder espiritual da Igreja; que mais a variedade das atividades humanas estava ordenada de alguma forma ao fim último do homem; que mais solidamente se desenvolveu a teologia e a filosofia, sobretudo com Santo Tomás de Aquino; que mais brilharam as virtudes naturais do homem, precisamente porque mais se conformaram às virtudes sobrenaturais ou teologais, infundidas por Deus mesmo; que mais efetivamente se combateram as heresias e se superaram as diversas formas de paganismo; etc., etc., etc. Uma coisa, porém, é reconhecê-lo sem hesitação, outra, muito diferente, é dizer ou que foi no Medievo que se deu a “verdadeira” Cristandade (e a Cristandade da Roma imperial, e a do período jesuítico pós-tridentino, e a do Império espanhol, etc., não serão manifestações da mesma Cristandade?), ou que o Medievo foi uma espécie de mítica idade de ouro do Cristianismo (e as quase ininterruptas lutas de reis contra a Igreja? e a constante luta desta contra arraigadas remanescências do paganismo bárbaro, como as justas, o direito de guerra, o ordálio, etc.? e a multidão de heresias? e a própria simonia? e o próprio nicolaísmo?). Estas são conclusões que se tiram de impressões semelhantes à que acabamos de ver com respeito à música, e que igualmente vão em busca de premissas mais sólidas. Neste caso, contudo, embora sempre se incorra no reducionismo típico desta espécie de pensamento mágico, são variados os resultados da busca. Atenhamo-nos a um deles – o que reduz a realidade da Cristandade posterior ao século XIII a uma suposta substituição progressiva, na alma dos católicos, do senso da fé por um senso de obediência de corte kantiano –, porque este resultado já conduz diretamente a uma forma de sedevacantismo, a qual, por um lado, é muito mais sofisticada e erudita que as mais conhecidas, mas, por outro, ainda mais radicalmente reconstrói de modo ideal a história.

(Continua.)