quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Pensamento mágico e bom senso (IX)

Carlos Nougué
Terminava o artigo anterior desta série dizendo que “a democracia antiga [por mais defeitos que tivesse, e os tinha muitos] era [pelo menos] uma realidade, era um fato, era um ato, enquanto a igualdade democrática moderna é uma idéia quimérica sempre por realizar, por construir, por alcançar”. Com efeito, segundo Aristóteles, a pólis ou cidade é uma relação real, uma rede de relações reais e dadas de acordo com a ordem do cosmos. Quando pois o Estagirita, na Política, se debruça sobre os diversos regimes para poder extrair dedutivamente deles a melhor constituição para Atenas, faz exatamente isto: contemplar a ordem do mundo e as realidades políticas já dadas para elaborar algo que esteja naturalmente incluído na ordem do mundo e entre os regimes políticos preexistentes. Todo o contrário do que fazem os propugnadores de sociedades futuras quiméricas (o terceiro reino de Joaquim de Fiori, a democracia liberal da sanguinolenta revolução francesa, o comunismo dos abutres Marx e Engels, o terceiro reich do gnóstico Hitler): tendo por modelo a sua própria mente, os quiméricos de todos os tipos dela deduzem os sonhos sociais e/ou econômicos mais estapafúrdios, mais antinaturais, e por isso mesmo mais mortais (física ou espiritualmente falando). Mais que isso: estando já no poder, os quiméricos, no exercício do mais radical dos pensamentos mágicos, declaram constantemente que os problemas da sociedade atual por eles comandada se devem a que a sociedade futura por eles propugnada ainda não está suficientemente implantada... Exemplos? Dizem os comunistas que as centenas de milhões de mortes sob o regime comunista se devem ao fato de o socialismo sob o qual elas se deram ser ainda um socialismo “real”, não o “ideal”, esquecendo-se porém de dizer que o socialismo real sob o qual se deu tal morte multitudinária era regido por seus próprios partidos... E não se passa o mesmo no campo dos liberais? Não dizem eles que os problemas econômicos do capitalismo liberal regido por eles mesmos derivam do fato de a economia ainda não ser suficientemente liberal?...

Estamos aqui, portanto, nos antípodas do realismo aristotélico. Para Aristóteles, porém, mais que uma rede de relações reais conforme à ordem do cosmos, a pólis, a cidade tem por causa eficiente determinado tipo de relação: a relação de philia ou amizade (ver aliás o belíssimo artigo, “A amizade”, que Sidney Silveira escreveu recentemente para este blog, e que se deve ter pressuposto ao ler este artigo). Com efeito, como anota Santo Tomás em seu Comentário à Política de Aristóteles (III, lect. 7, n. 411), para este as causas da pólis ou cidade são as seguintes:

● a causa formal é a “comunidade de bem viver”;
● a causa material é o conjunto das “comunidades naturais” unidas pela cidade, especialmente as famílias, mas também as aldeias;
● a causa final é “a vida perfeita” (que inclui, naturalmente, a superior bíos theoretikós, a vida teórica ou contemplativa, e pressupõe uma vida virtuosa, uma vida segundo a virtude);
● por fim, a referida causa eficiente que é a philia ou “amizade”, a que o Estagirita já havia consagrado todo o Livro VIII de sua Ética a Nicômaco.

Explica Aristóteles que a amizade se constrói em torno de um objeto. Com efeito, os amigos desejam o bem um para o outro segundo o objeto que está na origem de sua amizade. E dá Aristóteles três classes de bens: a utilidade, o prazer e o bem absoluto, razão por que quer-se o bem do amigo ou enquanto ele nos é útil ou agradável, ou com respeito ao bem absoluto. Em correspondência, pois, com essas três classes de bens, há três classes de amizade, e diz o Estagirita que as duas primeiras (ou seja, as que correspondem à utilidade e ao prazer) “têm caráter acidental, porque a pessoa amada é amada não enquanto é essencialmente, mas enquanto propicia algum bem ou algum prazer” (Ética a Nicômaco, VIII, 3, 1156 a 17). Por isso as amizades que se fundam ou na utilidade ou no prazer são de per si instáveis.

O contrário se passa com as amizades fundadas no bem simpliciter: são, para Aristóteles, as amizades perfeitas, e unem homens virtuosos. Como diz Maxence Hecquard, nesta classe de amizade “o bem do outro é querido porque se ama o outro” (ibid., p. 249), e, como diz o próprio Estagirita, cada amigo “é bom absolutamente e para seu amigo, porque os homens bons são ao mesmo tempo bons absolutamente e úteis uns para os outros” (op. cit., 4, 1156 b 7). Ao contrário das duas outras classes de amizade, esta é de per si estável, embora também seja mais rara, precisamente porque rara é a virtude. (Diga-se de passagem que sob a Nova Lei, a instituída por Jesus Cristo, a virtude natural se conformará à caridade, virtude sobrenatural e portanto infinitamente superior àquela, razão por que se pode dizer que a amizade efetivamente perfeita é a que se dá entre pessoas movidas pela caridade. Mas para efeito do que se pretende neste artigo basta o estudo aristotélico da amizade.)

Pois bem, ainda segundo o Grego, a cada classe de amizade corresponde determinada troca de bens. Assim, a amizade fundada na utilidade se concretiza numa troca de bens materiais, e pressupõe certo equilíbrio e certa igualdade. Mas para Aristóteles, naturalmente, pode haver amizade entre desiguais, como, por exemplo, entre senhor e escravo, apesar de que, ainda para ele, quanto mais desequilibrada e desigual, mais instável ela será. (E diga-se também de passagem que por essa razão Aristóteles julgava impossível a amizade entre Deus e os homens: demasiado grande é a distância entre eles [cf. Ética a Nicômaco, VIII, 9, 1159 a 5], e era impossível aos gregos “imaginar um Deus encarnado” [Maxence Hecquard, ibid., p. 250]*). Por outro lado, todavia, há casos como o da amizade da mãe pelo filho, que se dá mesmo quando o filho ainda nem sequer tem consciência de que a mãe é, casos pelos quais se vê que “a amizade consiste antes em amar que em ser amado” (Ética a Nicômaco, 9, 1559 a 27). É que em tais casos de amizade entre desiguais, nos quais um ama mais que o outro, a falta de igualdade na troca é suprida precisamente pela virtude.

Antes de prosseguir, porém, há que responder a uma objeção: como se pode dizer ao mesmo tempo que para os antigos a pólis ou cidade era uma relação real e que para Aristóteles a amizade era o alicerce da cidade? Sim, porque, sem deixar de ser real, a cidade em que reinava a tirania não tinha por alicerce a amizade. É verdade; sucede todavia que tal cidade, porque não fundada na amizade, era uma cidade degenerada e imperfeita: “ela permite sem dúvida a sobrevivência – que se deveria antes chamar subvivência –, mas não to eu zen, o bem viver. A cidade perfeita requer, ao contrário, a amizade perfeita, ou seja, a fundada na virtude” (Maxence Hecquard, idem).

Ora, a pólis ou cidade é uma rede de relações reais, antes de tudo, porque o homem é um animal naturalmente político ou social. Mas, ao contrário dos outros animais também naturalmente sociais, como as formigas ou as abelhas, o homem também é naturalmente dotado de razão e vontade, e por isso toda e qualquer cidade será uma rede de relações reais voluntária e desejada. Em outras palavras, o homem deve dar o seu assentimento à sua tendência natural a viver em sociedade,** e para fazê-lo perfeitamente deve fundar esse viver na mais estável das amizades, a que tem a virtude por objeto de troca.

E uma cidade fundada na virtude enquanto objeto de troca é antípoda de uma sociedade fundada num contrato social — como a de Rousseau — porque a virtude já não pode ser objeto de troca. Com efeito, se a única coisa reconhecida como virtude é a própria liberdade da consciência individual ou o que dela decorre, ou seja, é algo subjetivo, como a virtude poderia permanecer como objeto de troca e como, portanto, a pólis ou cidade poderia seguir fundando-se na amizade perfeita e estável? “Eis por que”, afirma Hecquard (ibid., p. 251), “a amizade perfeita, no sentido de Aristóteles, é impossível num mundo pós-crítico” (ou seja, pós-kantiano).

(Continua.)

* Com efeito, afirmar que os gregos não podiam imaginar um Deus encarnado nem uma revelação divina é já um tópico. Platão, não obstante, se escreveu no Fédon (85 c-d) que “é necessário [...] fazer uma das coisas seguintes: não perder ocasião de instruir-se, ou procurar aprender por si mesmo, ou então, se não se é capaz de nem de uma nem de outra dessas ações, ir buscar em nossas antigas tradições humanas o que houver de melhor e menos contestável, deixando-se levar, assim, como sobre uma jangada em que arriscar-se a fazer a travessia da vida, uma vez que não a podemos percorrer, com mais segurança e menos riscos, sobre um transporte mais sólido: quero dizer, uma revelação divina”, também escreveu, de maneira desconcertante, na República (II, 361 e-362 a): “Assim sendo, o justo será flagelado, torturado, amarrado; seus olhos serão queimados e por fim, após padecer todos os males, será crucificado [...]”. (Para uma explicação etimológico-histórica do termo “crucificado” tal como aqui empregado, ver Giovanni Reale, História da Filosofia Antiga, vol. II, São Paulo, Edições Loyola, 1994, p. 224, nota 3.) E dizia ainda Platão, fortalecendo a tese dos que vêem nele uma espécie de profeta pagão de Cristo e do Cristianismo: “Deixa que os outros te desprezem, considerando-te um louco, e que te ofendam, se assim o quiserem. Deixa mesmo, por Zeus, permanecendo impassível, que te atinjam com aquela bofetada ignominiosa, porque, se fores verdadeiramente honesto e justo e exercitares a virtude, nada de mal poderás sofrer” (Górgias, 527 c-d). Belíssimo: é o menos que se pode dizer.
** Para Aristóteles, o homem que vive fora da cidade ou não é um ser humano ou é um perverso (phaulós) (Política I, 2, 1253 a 13-15). Mas para Santo Tomás um homem que viva fora da cidade também pode ser um santo, como São João Batista (cf. Comentário à Política, Livro I, cap. 1/b, A78 96-100). A razão disso, dá-a perfeitamente na Suma Teológica (IIa-IIae, q. 152, a. 4, ad 3) : “O bem comum é melhor que o bem privado se eles pertencem ao mesmo gênero. Mas pode acontecer que o bem privado seja melhor em razão de seu gênero superior”, e assim como “a virgindade dedicada a Deus é superior à fecundidade da carne”, assim também a vida associal ou apolítica dedicada a Deus é superior ao bem viver da cidade.