sábado, 29 de novembro de 2008

Nos antípodas da Esperança cristã

Carlos Nougué
Diz o personagem shakespeariano Hamlet, na peça homônima, que após sua morte começará uma nova fase de sua história: a circulação dos vermes pelas tripas. Sim, porque nem a carne dos reis escapa a esta subterrânea azáfama.

“Sublime” epítome de uma forma artística, a tragédia neopagã, que, como já se disse, é como uma corda estendida entre o presente e o nada. Mais porém que epítome dessa forma artística, é epítome do próprio mundo que tem essa forma artística por um de seus emblemas. Naturalmente, também a tragédia clássica, greco-romana, era uma corda estendida entre o presente e o nada; mas o era, ao menos, pela mão (dura) dos deuses, e envolvia um quê de mistério, um quê de desconhecido, um Hades algo assustador, uns Campos Elíseos algo preanunciadores. A tragédia neopagã, todavia, da qual Shakespeare é representante máximo, não envolve nada desconhecido, não envolve nenhum mistério: deságua na conhecidíssima podridão da carne e em sua reabsorção no grande ciclo vital de geração e corrupção. (Se Shakespeare ao fim de sua carreira escreveu peças que apontam para a Esperança cristã, como A Tempestade, é outro assunto. Fala-se aqui do Shakespeare do elogio do suicídio em Romeu e Julieta e da vitória das paixões e da morte em tantas outras peças.) Pode ser até que haja um Deus ou deuses, como no filme Ran, de Akira Kurosawa, esse japonês que é o mais legítimo herdeiro do trágico Shakespeare; mas, como escreve o schopenhaueriano Machado de Assis ao final de Quincas Borba, eles ou as estrelas “não têm tempo para se ocupar das nossas misérias”. (E veja-se que se trata de artistas geniais: Shakespeare, Akira Kurosawa, Machado de Assis. Como porém já se disse alhures, uma coisa é o gênio, outra o que se faz com ele, ou, como diz Chesterton, “quanta boa literatura para tão má filosofia”...)

Sejamos justos, porém: a tragédia ao menos vê o mundo e o destino do homem, precisamente, como uma tragédia, ao contrário de tantos adoradores atuais da Mãe Terra, para quem é o ápice da felicidade morrer, apodrecer, desfazer-se em bocados de vermes... e “renascer” como planta ou animal. Falsa felicidade, própria de uma espécie de cinismo, beato e bobo: nunca nenhum homem, nunca nenhuma cultura, nunca nenhum povo que não estivesse totalmente degenerado jamais desejou o desaparecimento do homem enquanto indivíduo de natureza pessoal. Que o digam as pirâmides do Egito ou os mais primitivos rituais fúnebres das tribos africanas. Justiça à parte, no entanto, o fato é que o próprio ressurgimento da tragédia e sua difusão num mundo outrora católico é já indicativo de que esse mundo esqueceu as palavras de Jó: “Eu me revestirei da minha pele, e na minha carne verei a Deus. Eu mesmo, que não outro, o verei com os meus próprios olhos." E das palavras de São Paulo: “Ó morte, onde está o teu aguilhão? onde está a tua vitória?” Com efeito, para que veio, e morreu na Cruz, e ressuscitou Cristo senão para nos dar também a caução, a fiança de nossa própria ressurreição?

A morte é um castigo pelo pecado original. Certamente, como veremos na série “A imortalidade da alma humana”, esta é imperecível por natureza; mas tampouco somos entes puramente espirituais, como os Anjos; somos entes cuja alma espiritual e pois imortal é forma substancial de um corpo, de uma carne, razão por que nossa alma sobrevive, sim, a nosso corpo, mas de modo incompleto e imperfeito. Pelo pecado original, merecemos essa incompletude e essa imperfeição; mas pela Paixão de Cristo e sua Ressurreição merecemos e obtemos a nossa ressurreição, ou seja, a reunião de nossa integridade, corpo e alma. (A Crucificação de Cristo, como dizia Santo Tomás de Aquino, é a causa meritória de nossa ressurreição, e Sua Ressurreição, a causa eficiente dela.)

Obviamente, a Fé e a Esperança não nos secam de todo as lágrimas. Diz-se que a Idade Média, o período da história em que mais enraizado e difundido esteve o Catolicismo, chorou muito. E com ela Santo Tomás de Aquino, que segundo muitos relatos “profusus orabat lacrymis”. E disse Cristo mesmo, no Sermão da Montanha, que são bem-aventurados os que choram. Mas que lágrimas derramou a Idade Média? Que lágrimas derramou Santo Tomás? Que lágrimas derramam os que serão consolados? Em parte, certamente, são lágrimas por nossa própria morte; mas a estas as podemos enxugar com a pontinha do lenço da Esperança. Em parte são lágrimas pelo que diz Santo Agostinho em Sobre o Sermão do Senhor na Montanha: “Pranto é tristeza pela perda de coisas queridas. Os que porém se convertem a Deus perdem essas coisas queridas que os prendiam a este mundo, pois que já não se deleitam com o que antes se deleitavam; e, enquanto não se produza neles o amor das coisas eternas, são trabalhados por alguma tristeza. Por isso são consolados pelo Espírito Santo — a que por essa razão se chama Paráclito, ou seja, Consolador — a fim de que os que perdem a alegria temporal gozem a eterna”. Mas, como, socraticamente, diz ainda Santo Agostinho (idem), são sobretudo lágrimas pelo próprio pecado: “A ciência [como dom do Espírito Santo] é própria dos que choram, os quais conheceram já pelas Escrituras quais são os males que os mantêm acorrentados, males que eles, por ignorância, desejaram como bons e úteis, e deles é que se diz aqui: Bem-aventurados os que choram”.

Chorar por causa do pecado e orar com esperança está nos antípodas não só do sorriso beato e bobo dos da Nova Era e de certo catolicismo por ela influenciado; está nos antípodas não só do pranto da tragédia antiga, na qual se cegavam os olhos para não ver; está nos antípodas também da tragédia neopagã, na qual, ainda justiça à parte, há também um comprazer-se com a própria tragédia das paixões, da morte e do nada. Um gozo macabro.

Chorar por causa do pecado e orar com esperança não está na maioria dos grandes artistas da modernidade neopagã; mas está, sim, num poeta desprezado pelo pernosticismo mórbido dessa mesma modernidade: Casimiro de Abreu, esse pequeno grande poeta de cuja pena saiu o primor de singeleza com que este artigo se encerra:

A alma, como incenso, ao céu se eleva
Da férvida oração nas asas puras,
E Deus recebe como um longo hosana
O cântico de amor das criaturas.

Do trono d'ouro que circundam anjos
Sorrindo ao mundo a Virgem-Mãe se inclina,
Ouvindo as vozes de inocência bela
Dos lábios virginais de uma menina.

Da tarde morta o murmurar se cala
Ante a prece infantil que sobe e voa
Fresca e serena qual perfume doce
Das frescas rosas de gentil coroa.

As doces falas de tua alma santa
Valem mais do que eu valho, ó querubim!
Quando rezares por teu mano, à noite,
Não te esqueças: também reza por mim.

Em tempo: Até segunda-feira, escreverei o novo artigo da série “O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser”.