sábado, 22 de novembro de 2008

A amizade


Sidney Silveira
A amizade se funda na comunicação de bens objetivos
. E quanto maior e mais excelente o bem que se queira comunicar, maior a amizade. Amigo, portanto, é a pessoa que quer o melhor para aquele por quem nutre o que alguns teólogos morais chamam de amor de benevolência.

Santo Tomás, em alguns pontos de sua obra, chega a dizer que a amizade é o modo mais perfeito do amor (In III Sent., d.27, q.2, a.1), pois, além de possuir todas as características inerentes ao amor, ela acrescenta-lhe a mútua correspondência. Ademais, diz ainda o Angélico que a amizade tem duas excelências propriamente suas: a primeira é que, graças a ela, existe uma certa sociedade entre amante e amado no amor (societas quaedam amantis et amati in amore); a segunda é que o amigo age por eleição (ou seja: por escolha livre) e não por paixão concupiscente. E nesta escolha livre uma pessoa quer o melhor, quer o bem para o seu dileto amigo — e o bem numa tríplice perspectiva: um bem honesto, um bem deleitável e um bem útil.

Esses bens especificam as três formas de amizade: a honesta, a útil e a deleitável. Vale dizer que, para Santo Tomás, não se trata de espécies unívocas de amizade dentro de um mesmo gênero, pois a amizade se predica de maneira análoga. Elas se estabelecem segundo o anterior (mais perfeito) e o posterior (que se lhe segue), como afirma Patricia Astrorquiza Fierro em seu estupendo Ser y amor – Fundamentación Metafísica del Amor en Santo Tomás de Aquino. Assim, a amizade mais perfeita será a honesta, que abarca as outras duas e na qual se cumpre, em seu ápice, o amor benevolente, pois esse tipo de amizade se baseia na verdade, e não em interesses tópicos menores. A amizade honesta é o modelo da verdadeira amizade porque, nela, o amigo é amado pelo que é — e tanto mais será amado quanto mais isto que ele é seja contemplado pelo amante em sua dimensão espiritual, superior. Se ele é amado porque tem uma alma racional-volitiva, uma alma feita por Deus à Sua imagem e semelhança, este motivo da amizade bastará para especificá-la como virtuosa, forte, resistente às intempéries e aos mal-entendidos que muitas vezes chegam a engendrar ódios onde, antes, havia amizade. A propósito, este é, justamente, o porquê de o cristão amar os inimigos: nós não os amamos, dizia Santo Agostinho, enquanto inimigos, o que seria absurdo, mas enquanto semelhantes. Em suma, nós amamos os inimigos enquanto partícipes da semelhança divina. E aqui não é demais lembrar que os inimigos de hoje — em grande parte das vezes, possivelmente a maioria — são aqueles que, um dia, foram amigos, mesmo não tendo tal amizade a solidez requerida.

O fato é que, se a amizade não tiver essa virtude, a saber, essa força espiritual baseada em Deus — fonte de todas as verdades e de todos os bens —, ela tenderá a ser mais útil e deleitável do que honesta. Terá uma ou outra característica, mas com exclusão da principal, ou seja: tenderá a fazer dos bens úteis e dos bens deleitáveis um real impedimento para os bens honestos. Este é o caso, por exemplo, de pessoas que têm amigos apenas na medida do seu interesse ou do interesse do grupo a que servem. Esses não estão, por isso mesmo, no ato livre de uma escolha amorosa, mas escravizados no serviço a algo menor.

Aristóteles já nos ensinara, em suas duas Éticas, que os amigos são aqueles que se reúnem em torno da verdade, indicando-nos com isto que, onde não há verdade, não pode haver amizade em sentido próprio. O cristianismo foi além e disse que a amizade verdadeira é, também, impossível fora do amor, cujo objeto formal não é outro senão o bem. Isto nos remete à mais bela definição de caridade que já li, tão cara a Santo Tomás:

“Caridade é partilhar as verdades contempladas”.

Assim, se alguém não partilha integralmente as verdades (desde as mais simples e facilmente compartilháveis) das quais hauriu conhecimentos honestos, úteis e deleitáveis para si e para os demais, esse alguém é antes um egoísta que tem amizade mais por si mesmo do que por qualquer pessoa.

Vale ainda dizer que a verdadeira amizade é a raiz do perdão e também a raiz de quaisquer sacrifícios que se façam. Ou, noutra formulação: seremos tanto mais capazes de perdoar e de nos sacrificar, quanto mais a nossa amizade for honesta e se basear, primordialmente, em Deus. Postos nesta situação, poderemos captar o elevado sentido destas palavras simples de Nosso Senhor: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo. XV, 13).

De tudo isto fica-nos a lição de que a amizade, em sentido próprio, só será possível entre pessoas que, pelo menos, buscam a santidade. Fora daí, poderá até haver certo tipo de amizade, mas sem aquela complacência interior pela bondade intrínseca do amigo. Poderá haver uma amizade, sim, mas sem nenhum deleite espiritual.
Em tempo. A um dileto amigo, dedico o vídeo a seguir. Trata-se de uma música que sei que ele aprecia (ao violão com certeza, não sei se ao violino, como nesta versão): Csárdás.