domingo, 7 de setembro de 2008

A sensibilidade e seus riscos

Sidney Silveira
Vimos noutras ocasiões que o objeto formal de uma potência sensitiva — nesse composto psicossomático que é o homem — é um sensível, ou seja: um ente que se apresenta a um dos nossos sentidos na forma exata como a potência sensitiva o pode captar. Assim, não cabe ao olho resolver um problema de matemática, mas apenas ver determinada equação escrita no papel ou numa tela de computador, pois o ato a que o olho tende é limitado por sua própria potência, que é potência para ver, apenas*. E assim também ocorre com os nossos demais sentidos, internos ou externos. Como todos os demais entes, eles estão limitados pelas potências inscritas em suas próprias formas.

Dado que os sentidos se limitam a captar, em maior ou menor grau, a materialidade dos entes, isto lhes traz outra limitação, que é física. Santo Tomás exemplifica muito bem isto ao dizer, em diferentes ocasiões (como no seu magnífico comentário ao Liber de Causis), que a excelência de um objeto sensível corrompe o sentido que o capta: o excessivamente luminoso nos cega, o excessivamente quente nos queima, o excessivamente sonoro nos ensurdece e assim por diante. Mas o mesmo não ocorre com os inteligíveis: a sobreexcelência do sumo inteligível que é Deus, embora este jamais possa vir a ser entendido exatamente como é pelo homem (para Santo Tomás, nem mesmo na visão beatífica, quando os bem-aventurados verão a Deus face a face), não só não corrompe a inteligência do homem, mas torna-a incomensuravelmente melhor. E assim também com os demais inteligíveis, razão pela qual quanto mais entendemos, melhor entendemos. Mas o mesmo não se dá com os sentidos, com os quais ocorre o contrário: um excesso de sentir, uma hipertrofia na sensibilidade acaba funestamente trazendo um déficit no entendimento das coisas. Às vezes até impossibilita-o de todo, nos casos de paixões ou patologias mais graves.

Esta verdade antropológica foi trazida à luz por grandes pensadores de todos os tempos. Em suma, é preciso haver circunstâncias extrínsecas favoráveis para não exacerbarmos a nossa sensibilidade; quando não as há, ou seja, quando as circunstâncias extrínsecas não apenas não permitem o recolhimento interior, mas além disso excitam os sentidos de forma exagerada, as energias do espírito se esgotam dramaticamente, a ponto de as verdades mais elevadas sobre os entes se tornarem vedadas, por completo. Como dizia o padre Leonel Franca, a intemperança tem uma ação dissolvente sobre as energias psíquicas. Por isso, sem uma ascese que propicie a temperança na sensibilidade, jamais um homem poderá sequer aspirar a conhecer as verdades mais altas. Vejamos o que nos lembra o mesmo Leonel Franca, num trecho de seu formidável A Psicologia da Fé:

“Já Pitágoras submetia os seus discípulos a um longo tirocínio de virtudes que os preparassem à visão clara da sabedoria. Um ascetério era o vestíbulo da escola. (...) Platão desenvolveu muito mais amplamente a necessidade de purificação da vida para as ascensões do espírito. Todos conhecem o itinerário por ele traçado à inteligência para elevar-se das coisas sensíveis à contemplação das verdades invisíveis e principalmente à Idéia do Bem. Essa felicidade suprema é essencialmente condicionada pelo esforço de uma purificação completa. (...) O neopitagorismo, com sua disciplina ascética, e o estoicismo, com a predominância de suas preocupações morais, desenvolveram e ampliaram as idéias de Platão. (...) Mas foi sobretudo a escola neoplatônica [com Plotino] a que mais acentuou esta necessidade de uma preparação moral para o conhecimento das mais altas verdades (...)”.

O cristianismo deu a todas essas práticas ascéticas o equilíbrio necessário (e perfeito, já que proveniente de uma fonte sobrenatural divina). O resultado foi a resolução teórica e prática do problema das relações entre alma e corpo, sentidos e inteligência. Não nos deteremos nessa resolução teórica e prática — limito-me, no momento, a indicar a todos a leitura dos tratados da IªIIª e da IIªIIª da Suma Teológica, onde há uma condensação das soluções para o problema que nos ocupa. E fiquemos, por ora, apenas com a certeza de que é preciso praticar a continência na sensibilidade (sobretudo se considerarmos, como católicos, que a nossa natureza é decaída em razão do pecado original, e, por isto, tendente a toda a sorte de erros e corrupções).

Reiteremos aos leitores do blog: guardem bem isto, porque a série que começaremos em breve, sobre o cinema, partirá desta certeza (a qual tem como base uma bem-estruturada antropologia, baseada por sua vez em premissas metafísicas sem as quais, como já se disse, não se progride no estudo da filosofia): a necessidade de não exacerbarmos a nossa sensibilidade com imagens que podem obliterar a inteligência, desorientar o espírito, cauterizar a consciência e, enfim, arrojar-nos num abismo moral sem fundo.

* Que nos aguarde Xavier Zubiri, filósofo para quem sentimos entendendo e entendemos sentindo. Dessa sua tese, de indisfarçada inspiração fenomenológica, nos ocuparemos noutra oportunidade.