segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O mistério da história (II e final)

Carlos Nougué
Assim como, na Terra, a Igreja nunca se verá totalmente desembaraçada de pecadores e traidores (as varas da videira que não dão fruto, como se lê em João XV, 1-2), nem nunca poderá depor a Cruz do Esposo, assim também nunca tornará a haver um paraíso terrestre, porque, como quer que seja, em maior ou menor medida, as cidades morredouras sempre acabam por contagiar-se de peçonhas diabólicas. Só a Igreja, enquanto tem por cabeça a Cristo mesmo e enquanto o Lavrador acaba sempre por lançar-lhe ao fogo as varas estéreis e secas (João XV, 6), é isenta de tal contágio, a mesma Igreja que, todavia, conquanto sabedora da perecibilidade das cidades carnais, sempre buscou trazê-las para as fileiras do Senhor dos Exércitos.

Se porém tal é fato, por que, então, a sucessão dos séculos e a própria perecibilidade das civilizações? Porque é justamente no interior da sucessão dos séculos, tornada plenitude irreversível dos tempos, e mediante os esforços e provações dos movidos pelo Espírito, que se vai formando o corpo da Igreja triunfante — para a maior glória de Deus e para o bem do mundo que Ele tanto amou, o mundo dos eleitos. E como se completará o número dos membros da Igreja triunfante? Sempre pela graça e pelo mérito de Cristo, e em meio às tribulações e sofrimentos inauditos do fim dos séculos. Será então que, fazendo cessar a história, Cristo introduzirá a Esposa na Jerusalém celeste e lançará para sempre Satã e os demais demônios no lago eterno de fogo e enxofre, o lugar da segunda e definitiva morte (Apocalipse XXI e XXII).

Por certo — e devemos precaver-nos de um falso desprezo do mundo, dado que o desprezo do mundo ou será católico e místico, ou será uma contrafação — há ainda a finalidade terrestre da sucessão dos tempos, a saber, “permitir à natureza humana desdobrar as suas virtualidades na obra de civilização” (R.-Th. Calmel O.P., Théologie de l’histoire, p. 12); mas tal finalidade permanecerá sempre secundária e terá sempre caráter de meio, uma vez que a finalidade suprema e última da história não é temporal, não é secular — “é a manifestação, pela Igreja, da glória de Cristo e da virtude da sua cruz em todos os santos e em todos os bem-aventurados” (idem), ou seja, por outro ângulo, a já referida completação do número dos eleitos. Tudo o mais a isto se subordina, inapelavelmente.

E eis que o próprio Senhor nos quis dar luzes sobre os derradeiros dias deste mundo e sua figura, sobre tal misterioso remate da história: ainda que inauditamente tremendos, medonhos e estranhos, os últimos anos do definitivo declínio terão algo em comum com todos os milênios que os terão precedido e preparado desde a Anunciação, desde a Encarnação, desde o Calvário, desde Pentecostes. Eles se inserirão, como os demais, justamente na plenitude dos tempos, que não é senão, por tudo quanto já vimos, um dom do Verbo encarnado ao mundo dos eleitos. Nunca perderá o Filho o poder de que o investiu o Pai, e nunca deixará de percorrer vitorioso a Terra sobre o seu corcel branco. (“Depois vi o céu aberto, e eis um cavalo branco, e o que estava montado chamava-se o Fiel e Verdadeiro, que julga com justiça, e combate. E os seus olhos eram como uma chama de fogo, e ele tinha sobre a cabeça muitos diademas, e um nome escrito, que ninguém senão ele mesmo conhece. E vestia uma roupa salpicada de sangue; e o seu nome é Verbo de Deus” [Apocalipse XIX, 11-13].)

“É por um desígnio de amor que o Senhor quer que Sua Esposa, a santa Igreja, seja configurada à Sua Paixão; que ela faça em certa medida a experiência das trevas e do desamparo do Jardim das Oliveiras. Ela deve ressentir à sua medida o alcance misterioso deste ‘Sinit usque huc’ (Lucas XXII, 51) que Jesus pronunciou em sua santa agonia. Se o Senhor quis para Sua Esposa, em certas épocas, uma experiência mais profunda das dores da Sexta-Feira Santa, é porque quis dar-lhe também provas ainda mais profundas da eficácia de Seu Poder e da intensidade de Seu Amor” (idem).

Assim é: todo o mistério da história se resolve no Amor efusivo do Criador, este Amor cuja grandeza é sem medida, e cuja onipotência e onipresença são um seio sempre providencial e beatífico.

Em tempo: “É muitíssimo verdadeiro que em nossos dias as nações rugiram e os povos meditaram projetos insensatos contra o Criador (Salmo 2); eles gritaram com voz quase unânime: Retirai-vos daqui (Jó XXI, 14). Daí, em grandíssimo número, o desaparecimento completo do respeito ao Deus eterno; daí os hábitos da vida privada e pública que fazem total abstração da sua soberania; muito mais ainda, esforçam-se por todos os meios e com toda a astúcia possível para fazer desaparecer absolutamente a lembrança de Deus e até a sua noção. Quem considera essas coisas não poderá evitar o temor de que tal perversão dos espíritos seja como que um antegosto e prelúdio dos males que devem sobrevir no fim dos séculos, e de que o filho da perdição de que fala o Apóstolo já esteja em ação sobre a terra (II Epístola aos Tessalonicenses II, 3), de tão extraordinários que são a audácia e o furor do assalto generalizado contra a piedade e a religião, os ataques contra os dogmas da fé revelada, a obstinação em pôr fim a todo e qualquer dever religioso ” (São Pio X, Encíclica E Supremi Apostolatus Cathedra).