terça-feira, 30 de setembro de 2008

O desprezo pela clareza: o limbo (I)

Sidney Silveira
Vimos, noutras ocasiões, que o trabalho do teólogo, embora importante, é subsidiário, e por si não chega a ter caráter magisterial — além do mais, precisa ser aprovado pelas autoridades eclesiásticas competentes.


A razão de se encontrarem hoje no supermercado de idéias teológicas, aqui e ali, proposições que parecem desconsiderar o Magistério infalível da Igreja provém, diretamente, da “liberdade” com que alguns teólogos pensam poder expressar as suas teses. Já demos o exemplo do poligenismo, a opinião (condenada pelo Magistério!) de que Adão e Eva não existiram, mas sim um conjunto inumerável de “protoparentes” (sofisticada expressão, não?).


Na verdade, o múnus da teologia requer absoluta clareza expositiva, e esta não pode ter lugar onde se desprezam os princípios de não-contradição, identidade, causalidade, razão suficiente, entre outros. A velha idéia de De Lubac de que a lógica humana se opõe ao mistério divino é uma aberração, mas que no entanto teve conseqüências para várias teologias posteriores, nem sempre preocupadas com a precisão na formulação dos conceitos. Uma delas foi a tese, muito encontradiça entre certas correntes teológicas influentes há alguns anos, de que a realidade “mistérica” — ou seja, o mistério que Deus é —, sendo formalmente inexpressável pela inteligência humana, não se adapta a nenhuma formulação (razão pela qual existiria uma radical inadequação das fórmulas dogmáticas à realidade misteriosa de Deus Pai, assim como à realidade de Cristo, de Maria, etc.). Segundo essa tese, o mistério de Cristo e da Igreja ultrapassa todas as possibilidades de expressão humana em cada época histórica, e, por isso, não pode ter formulações definitivas, excludentes de outras.

Essa idéia expressa uma meia verdade, a saber: com certeza, o dogma não nos pode dar a conhecer integralmente a realidade divina a que se refere. No entanto, ele expressa aspectos universalmente verdadeiros e objetivos dessa mesma realidade. E mais: a tese da inadequação “se esquece” de que tudo o que um ente recebe, recebe ao modo de recipiente, como não cansa de frisar Santo Tomás em diferentes obras, razão pela qual a Revelação e os dogmas se adaptam ao modo humano de conhecer — o que não significa, por isso, que sejam “inadequados”, mas ao contrário: são totalmente adequados à nossa humana inteligência.

Entre esses novos teólogos estão os que mais desprezam a precisão da terminologia escolástica — conheci pessoalmente alguns que costumam contrapor a patrística à escolástica, em detrimento desta última, artificiosamente. E é entre eles que se encontram alguns dos que mandaram o limbo para o “inferno”.

Antes de entrar no mérito da questão, registre-se que a idéia de que o limbo não existe é tão-somente uma tese, e não integra o Magistério. O que este diz, ao contrário, é o seguinte (dados extraídos de um exemplar do jornal Sim, Sim, Não, Não, e depois conferidos por mim no Denzinger):

Papa Inocêncio I (417): “É loucura afirmar que as crianças possam entrar no céu sem o batismo”.

Papa Zózimo (418) aprova o Concílio de Catargo afirmando: “Ninguém pode ser considerado isento do pecado original antes de dele ser liberado pelo batismo”.

Concílio de Florença (1445): “As crianças destituídas do uso da razão só podem ser ajudadas pelo sacramento do batismo”.

Concílio de Trento (1563): “Não é possível passar do estado do pecado ao estado de graça sem o batismo ou ao menos seu desejo”.

Pio XII (Alocução de 19 de outubro de 1951): “Não há outro meio senão o batismo da água para comunicar a vida sobrenatural à criança que ainda não tem o uso da razão”.

A Comissão Teológica Internacional – CTI, ao dizer (em texto publicado em 19 de janeiro de 2007) que o limbo é apenas uma hipótese teológica possível, elaborada na Idade Média, e que jamais entrou nas definições dogmáticas do Magistério, além de não ser doutrina fundamentada na Escritura, comete quatro erros, porque: 1º) Os Padres gregos já afirmavam em uníssono a exclusão das crianças não batizadas da visão beatífica de Deus, e portanto não é verdade que seja doutrina ensinada somente a partir da Idade Média; 2º) o fundamento escriturístico está em Jo. III, 5; 3º) quanto às formulações dogmáticas, bastam as que mostramos acima; 4º) o limbo não pode ser rebaixado a mera hipótese teológica possível por tudo o que se disse anteriormente. Na verdade, a tese de que o limbo não existe é que é uma hipótese teológica, e na verdade muito pouco (ou nada) possível, por se contrapor ao Magistério.

A idéia de que o limbo é uma concepção restritiva da salvação, também presente no documento da CTI, não considera o que grandes Doutores da Igreja sempre disseram (como o próprio Santo Tomás): o limbo é um lugar de felicidade natural. Ademais, não podemos deixar de lembrar que a visão beatífica (da qual quem está no limbo é excluído, de acordo com a doutrina católica) é uma felicidade sobrenatural que ultrapassa os direitos da natureza.

Veja-se no que dá deixar de lado a clareza e a objetividade: chega-se até a pôr em dúvida a misericórdia de Deus (quem já não ouviu alguém simpático à tese dizer que Deus não poderia fazer uma “maldade” dessas com criancinhas sem culpa, a saber, mandá-las para o limbo?). Ora, não devemos julgar a Deus, e muito menos com critérios da justiça humana, tão limitada.


Enfim, como o Magistério da Igreja não pode contradizer-se, cremos que o limbo jamais poderá ser anatematizado pela autoridade eclesiástica, ainda que mil teólogos digam o contrário...