terça-feira, 12 de agosto de 2008

A estrutura da ação humana em sua completude (VII)

Sidney Silveira
(continuação de: 1- A psicologia da ação humana)

Chegamos enfim à potência cogitativa — último dos chamados sentidos internos. Pelo que vimos até aqui, já ficou evidente que, por receber as coisas de modo fragmentado a partir da sensibilidade, não possuímos instantaneamente (ou intuitivamente, diriam os fenomenólogos) nenhum conhecimento integral, nenhuma verdade completa acerca de qualquer ente, mas, ao contrário, nosso intelecto precisa fazer um esforço, não raro penoso, para alcançar a verdade. Trata-se de um processo do mais confuso ao menos confuso, como indica Santo Tomás (in Suma Teológica, I, 85, a.3), citando a Aristóteles, ao verificar isto já nas crianças, que primeiro distinguem um homem do que não é um homem, depois este homem de outro, etc.

b.4) A cogitativa

A via cogitativa é capaz de captar certas intenções que não são percebidas pelos demais sentidos, como o caráter de conveniente ou nocivo, de amizade ou inimizade. Nos animais, Santo Tomás afirma que essa captação pertence à potência estimativa: a ovelha, ao ver o lobo, estima que este é seu inimigo e foge. É algo muito semelhante ao que várias psicologias contemporâneas chamam de instinto (e o homem, segundo o Angélico, também o possui, e aduz como evidência fatos como o citado na seguinte passagem: “Vemos naturalmente que a parte se expõe para conservar o todo, como a mão se expõe, sem deliberação, para a conservação de todo o corpo [cf. Suma Teológica, I, 60, a.5]). Assim, são instintivas certas ações dos animais irracionais, que se guiam por uma espécie de “juízo” natural, que produz sua capacidade estimativa. Mas, no caso do homem, a cogitativa é guia e conduta de toda a atividade afetiva, porque combina intenções individuais, e por isso afirma Santo Tomás que, no homem, a cogitativa não opera de maneira puramente instintiva, senão como certa razão particular, de modo que o nocivo e o útil se distingam por certa comparação (collatio). Essa capacidade de estimar comparando sob certa razão particular é, para Santo Tomás, uma potência própria do homem, apenas.

Vale assinalar que, de acordo com alguns tomistas, é por intermédio dessa razão particular ou cogitativa que a razão universal exerce sua influência sobre as paixões, o que veremos noutra ocasião.

Breves apontamentos sobre este tópico

Foi evidenciado, ao longo dos textos desta série sobre as nossas potências sensitivas — os quais sugiro aos leitores imprimir, na ordem em que foram escritos, ou então copiá-los e colá-los nessa ordem, em vista de uma leitura profícua — que é pelos sentidos que nos chegam as primeiras notícias da realidade. Por isso, em alguns trechos do seu hoje clássico Existencialismo y tomismo, Octavio Derisi assinala que a única intuição direta de que somos capazes é a sensitiva. É a do ente apreendido em suas qüididades materiais.

E não confundamos a refluência das potências intelectivas sobre os sentidos (toda vez que, pela memória, nos lembramos do que já foi sentido e entendido) com intuição direta da essência das coisas, pois, neste caso específico, se trata de um conhecimento que já fora abstraído anteriormente, e do qual nos lembramos no ato em que os sentidos recebem novamente aqueles dados.

Adiante, estudaremos as potências superiores da nossa psique (inteligência e vontade), com o propósito de mostrar o seguinte, à luz do que já foi apresentado e sempre seguindo de perto a Santo Tomás:

a) A verdadeira natureza da liberdade;
b) O que é a eleição humana (o ato de escolha, em sentido próprio).

Dadas essas realidades antropológicas fundamentais, e considerando tudo o que pode formalmente prejudicar a nossa liberdade — sempre tendo em vista a noção de fim último —, veremos:

a) Que lugar devem ocupar as teorias econômicas.
b) Tendo em vista as potências que somos capazes de atualizar e os bens mais excelentes que podemos alcançar (para cuja consecução todas as nossas potências inferiores estão a serviço), veremos se o crescente aumento da reprodutibilidade de bens materiais é necessariamente um bem, ou se há casos em que, em relação aos bens espirituais superiores (não só os religiosos, mas os da inteligência no exercício dos seus atos formais), esse aumento da reprodutibilidade de bens materiais pode representar um mal de grandes proporções, a ponto de transformar-se naquilo que, na "Regra de São Bento", se chama vitium proprietatis — o “vício da propriedade” que deve ser extirpado na raiz, nas palavras do Santo, sob risco de transformar-se em impedimento formal para chegarmos ao céu.
c) Que não há paralelismo entre bens materiais e bens espirituais, mas ordem dos primeiros aos segundos. Perdida essa ordem, o abismo é certo.

Somente então voltaremos ao liberal Ludwig von Mises, e ao seu Human Action. Mas continuemos devagar, que assim se chega ao longe...