segunda-feira, 21 de julho de 2008

Beethoven ainda (II)

Carlos Nougué
“Como quer que seja”, prossegue o Padre Labouche, “o trecho [da peça analisado] ilustra o poder que pode exercer o ritmo de uma música sobre o coração e as paixões humanas [o que disse, por exemplo, Aristóteles ao final da sua Política], ao preço de uma destruição da melodia e de uma forte tensão harmônica. Beethoven não chega ao ponto de sacrificar a música ao ritmo, como o fazem os grupos de hard rock, mas ele sabe desencadear o ritmo como nenhum outro músico jamais pensara ou ousara fazer. De certo modo, os seus efeitos rítmicos são ainda mais violentos que os do rock, porque são inteligentemente postos em contraste com melodias revestidas de grande nobreza e até ternura [...].”

Após isso, diz o Padre algo com que não posso concordar integralmente: “Que os nossos jovens escutem Beethoven, e descobrirão o que o rock não lhes pode dar: pujança, nobreza e profundidade”. Ora, uma coisa é dizer que escutar Beethoven é um mal menor (bem menor, aliás) do que escutar rock; mas como elogiar algo cujos efeitos rítmicos são, de certo modo, “ainda mais violentos que o do rock”? Além do mais, vejamos a serviço de que está a “nobreza e profundidade” na sonata em questão e em boa parte da obra de Beethoven.

Analisemos, com o Padre Labouche, apenas os dois últimos movimentos da Appassionata. O primeiro deles, aquele em que se daria o sentimento religioso derivado da aceitação do destino, é assim descrito:

II. ANDANTE CON MOTO

• TEMA: Melodia calma, doce, quase “religiosa”, de fato harmônica, em duas partes repetidas.

• COM 4 VARIAÇÕES:

– Primeira: Mesma melodia com um pouco mais de movimento, devido a um acompanhamento sincopado.

– Segunda: Melodia com mais movimento (semicolcheias), mas constante e lírica.

– Terceira: Movimento ainda acentuado (fusas); a melodia é mais uma vez sincopada.

– Quarta: Retorno á calma, a uma doçura pensativa, que termina num acorde de 7ª menor que deixa o ouvinte em suspenso...”

O último movimento é assim dissecado:

III. ALLEGRO MA NON TROPO

• INTRODUÇÃO: Intenso martelamento desse acorde de 7ª anuncia o fim da calma e o RETORNO DA TEMPESTADE.

• EXPOSIÇÃO: Um primeiro tema evoca um oceano agitado, e um segundo saindo de seu acompanhamento. Furiosa codetta.

• DESENVOLVIMENTO: Alguns momentos de calma, desenvolvimento do tema I, nova figura sincopada; o tema I vai dar numa codetta furiosamente sincopada, até uma quase desintegração. Novamente um instante de calma, mas em acorde de 7ª.

• RECAPITULAÇÃO: Retorno do tema, com uma nova figura, depois um quase repouso, mas a agitação dos temas I e II é contínua; aceleração num martelamento extremamente rápido, reaparecimento do tema I, fustigado num fim ao mesmo tempo brilhante e sombrio”.

Outra conclusão ineludível: a sonata nem sequer termina com o tal “sentimento religioso de aceitação do destino”, mas com uma erupção vulcânica cujo fim é “ao mesmo tempo brilhante e sombrio” – o que é típico do romantismo gnóstico, como já vimos com respeito ao Tristão e Isolda de Wagner (“amar o amor como antecâmara da morte”): já não o claro-escuro barroco, que expressava ou representava, de alguma maneira, o claro-escuro dos mistérios do ser e da fé, mas o brilho-sombra da morte apetecida ou aceita para se voltar resignada e gozosamente ou ao Nada ou pelo menos, no caso de Beethoven, ao Inefável.

P.S. 1: Aliás, dirá o próprio Beethoven em seu “testamento de Heiligenstadt”: “Um pouco mais e eu teria dado fim à minha vida [por causa da surdez]. Foi a arte, e apenas ela, o que me deteve. Ah! parecia-me impossível deixar o mundo antes de ter dado à luz tudo o que eu sentia germinar em mim [... eu sou] alguém que, apesar de todos os obstáculos da natureza, terá feito todo o possível para ser admitido na categoria dos artistas e dos homens de valor” [apud Padre Labouche, ibid.]. Que haverá nisso já nem digo de sentimento católico, mas sequer do tal “sentimento religioso”? Puro sentimento mundano: “Aceito meu destino para poder dar tudo quanto de bom tenho para dar ao mundo, e para entrar, assim, no panteão da Fama”.

P.S. 2: Tão contrariamente a Beethoven, eis algumas das últimas palavras postas em música por Bach ao pressentir sua morte: “Todo homem deve morrer” e “Senhor, eis-me diante do vosso trono”. (Seguimos no próximo post).